quarta-feira, 25 de julho de 2018

Meninas más

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Não fui uma menina má porque nem me ocorreu que fosse possível. O máximo a que cheguei foi ser em tudo como meu irmão. Desde muito pequena, estabeleci que tudo o que ele fizesse eu também faria. Só não tomei parte naquela batalha de pedradas contra a turma rival porque meu irmão, prevendo perigo, mentiu dizendo que ia fazer outra coisa e me deixou brincando de panelinhas. Mas fui índio pele-vermelha na tribo da qual ele era o chefe, e participei como vigia da arriscada invasão do território das freiras. Penso nisso ao ler o conto “Una niña mala” (uma menina má), da escritora Montserrat Ordoñez.

“Quero ser uma menina má, não lavar os pratos nunca, e fugir de casa [....] Não quero esperar na varanda, suspirando e segurando as lágrimas, a chegada do papai. Nem com mamãe nem com ninguém. Quando eu for uma menina má, gritarei, chorarei dando ataques até que a casa caia.” Assim começa esse conto pequeno como uma jóia, ilustrado por Diego Nicoletti, que vi na Feira de Medellín e que agora uma amiga colombiana me mandou.

Montserrat Ordoñez também é colombiana, ou assim se tornou tendo nascido em Barcelona. Foi poeta, escritora, tradutora, editora, professora universitária especializada em literatura escrita por mulheres. Morreu em 2001.

Sua menina má é uma menina que quer "uivar para as estrelas e dançar com seu gato ao redor da fogueira". Quer ser valente e abrir e fechar a porta, abrir e fechar a boca, dizer que sim e dizer que não quando bem entender”. Não deixará que “lhe façam tranças aos puxões, toda manhã, entre o ovo e o café”, e terá “pelo de loba e se sacudirá das orelhas até a cauda antes de enfrentar o bosque”.

Nas ilustrações de Nicoletti a menina está sempre rodeada de lobos. E os olhos dos lobos cintilam.

Só agora eu me rodeio de lobos, nos contos, na conferências, em alguns poemas. Mas sempre fui valente. Quando abri a porta da casa familiar da última vez foi para ir embora porque, como quer a menina do conto, havia dito a meu pai que não queria mais fazer as tarefas da casa, não queria mais cozinhar e cuidar de que tudo estivesse a gosto para o meu irmão.

Antes, tinha sido Jane nas selvas do Parque Lage enquanto ele era Tarzan, tinha voado pendente num cipó e mergulhado na cachoeira segurando o fôlego debaixo d’água.

Nunca meu irmão fez sua própria cama, nunca lavou um prato, nunca fritou um ovo. A ele não se pedia que vestisse avental por cima da roupa. Podia sentar como quisesse, e cruzar as pernas. Nem por isso seria considerado um menino mau. Nem mesmo por fingir tomar banho, fazendo ruído de água na banheira, enquanto lia o livro que guardava escondido atrás do vaso sanitário.

Ele era como eu queria ser, e como me tornava quando botava meus pés nas suas pisadas. Tinha um ano mais do que eu e era mais forte, mas mergulhei com ele na laje Santo Antônio e na Gruta da Imprensa, temendo ver um cação aparecer repentino. E mergulhei no navio afundado da Barra da Tijuca, temendo que o mar virasse porque, sem saber pegar onda, eu não conseguiria voltar à praia.

Ele sempre me apoiou.

Depois, fui ser menina má por minha conta, abrir e fechar a porta da casa em que só eu mandava, dirigir meu próprio carro. Fui ser feminista e dizer a outras mulheres, outras meninas, que elas não são más por contrariar as normas restritivas impostas pela sociedade. Ao contrário. É quando são más, que se tornam o melhor que podem ser.




Marina Colasanti - Fonte: https://www.marinacolasanti.com/2017/11/cronica-de-quinta-meninas-mas.html
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