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Vivo num mato sem cachorro com essa coluna. Os leitores se dividem entre os que gostam de reminiscências e os que gostam de modernices.
É muito mais fácil escrever sobre o que já passou, o que já está escrito, o que se foi com todos os seus pontos e vírgulas. E o reles passado faz parte da experiência comum, conversamos sobre ele a toda hora, discursamos o nosso passado ao receber o Nobel ou ao encontrar a irmã que se mudou para a China. Lembra? Lembra? Lembra?
Os jovens dizem que se aborrecem com os velhos e suas histórias que mais parecem exercícios terapêuticos repetidos para reinterpretar o passado. Alzheimer à vista!
Em matéria de comida, então, a coisa se complica, pois, nesse campo, velhos, moços e crianças têm passado. A primeira ostra, o sanduíche de ovo esparramado na lancheira, a bala Fruna, o picolé do interior, o cereal com o monstro na caixa. O furinho na lata de leite Moça, os dois furinhos, aliás, a moringa de água fresca na janela.
Na internet, formam-se comunidades em torno de grupos como "adoro feijão preto" e "tenho medo de jaca mole". Talvez extravasando cada sentimento em fotos não nos lembremos deles com tanta emoção no futuro.
Mas parece que não há perigo. Um viúvo de 79 anos fez um vídeo em um blog que foi parar no You Tube. No começo, muita gente implicou com aquele avô se metendo num espaço que não era dele. Em um mês, foi visto por 2 milhões de pessoas de todas as idades e de todo o mundo. Não que as histórias dele fossem diferentes ou exóticas.
Não. Eram as mesmas de todos os velhos, só que compartilhadas e curtidas na internet. As memórias eram velhas, mas a forma de comunicá-las muito nova (digite "geriatric 1927" no youtube.com).
As lembranças de comida raramente são impactantes. Uma brisa. Ao nos lembrarmos de uma garrafinha de chocolate forrada de papel brilhante colorido, recheada com licor açucarado em cristais, só uma surpresa inocente, um tempo, um lugar, uma hora, um cheiro, uma risada, uma bobeira.
Por exemplo, encontrei uma colega e rimos de morrer do tempo das Missões, quando o colégio se desdobrava para arrancar dinheiro do mundo das meninas.
Até hoje não sabemos muito bem o que eram as Missões, mas na nossa cabeça uma freira iria para a África num sacrifício enorme para cuidar de doentes da peste na selva de jacarés e leões. E tínhamos que ganhar algum dinheiro para custear o martírio.
Maria da Glória fazia pirulitos em cones, espetados num palito para vender no recreio. A luz acabou, as velas caíram na panela e, naquele dia, chuparam-se pirulitos de velas para as Missões.
Eu comprava uma bandeja de empadinhas na Doceira Paulista para revender e comia uma. No fim do mês, percebeu-se que o lucro se esvaíra entre meus dedos com a empadinha comida. O pai teve que bancar a freira perdida na África.
É, uma croniqueta só relembra imagens, cheiros, sensações. Há que se prestar atenção nessas nossas vidas de pequenas emoções, conservar o olho parado no presente, adivinhando o futuro-a-Deus-pertence.
Nina Horta - Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ninahorta/1147739-imagens-cheiros-sensacoes.shtml
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quarta-feira, 5 de setembro de 2012
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