terça-feira, 17 de agosto de 2010

O que matou Rafael? Carta a Cissa Guimarães

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Estou em Paulínia e fico sabendo da notícia da morte de Rafael, filho da minha querida Cissa Guimarães. Meu coração começa a sangrar e a doer como se fosse o dela, como se a gente fosse parente e, quase como se fosse menino meu, embora nada chegue aos pés da dor dela. Claro que morrem milhares de jovens nesse país a toda hora e nem ficamos sabendo da prematura e anônima notícia, e por isso que dirão que só nos comovemos com essa perda porque é filho de artista conhecida. Ora, é e não é. Essa atenção se dá não só porque temos acesso ao fato, porque ele sai no jornal, mas principalmente porque o artista nos representa. Cissa simboliza alguns signos: força feminina, independência, modernidade, informalidade, honestidade, uma vez que seu nome nunca esta envolvido em falcatruas, responsabilidade materna, porque todos sabem que ela criou os três filhos, sem contar seu carisma e sorriso, que desde a primeira versão do Vídeo Show, fazem dela uma espécie de gente da nossa família. Por isso nos importamos tanto, por isso dói na gente porque fica representando nossos filhos e os filhos de quem não sai no jornal. O menino dela é menino nosso.Tenho em minha mente a imagem dela lendo meu poema Chupetas, punhetas,, guitarras” no espetáculo O Semelhante. Ela adora esse poema e, como minha convidada, chorava lágrimas sinceras ao dizer os versos: ‘...faço compressas pra febre, afirmo que quero morrer antes deles....” Por causa dessa imagem nem tive coragem de ligar para ela e, impossibilitada de dar-lhe meu abraço por estar em viagem, busquei nas palavras algum remédio que buscasse o entendimento desta tragédia. Por isso pergunto: “O que matou esse jovem de menos de vinte anos? O que lhe roubou o futuro?”. Pelo o que li e vi na TV, a impunidade integra ,de novo, o elenco da barbárie. Policiais que estavam no local, ao que parece, foram outra vez coniventes com quem desrespeita a lei que representam. Não conheço os assassinos de Rafael e nem quero aqui ser leviana, mas toda hora vejo uma legião de famílias que não prioriza o amor pelo seu semelhante no conteúdo educacional dos seus filhos. Não é só para bandido que a vida não vale nada. Não. Ela também não vale para o menino que, com o carro que talvez nem possa manter, dá cavalo de pau em um túnel fechado cuja placa de interdição ele não aceita. Há jovens criados com a perversa ilusão de que tudo podem e que diante de seu poder e dinheiro não existem porta fechada, respeito, lei. Desde quando mataram o índio em Brasília que me caiu essa ficha:Alguém dentro de casa ensinou, através de palavras ou ações, a esses meninos infratores da classe média e da alta, que a vida não vale nada. Esse assunto tem raízes mais profundas e nos leva a questionar como estamos educando nossos filhos. Gente ou monstro? Precisamos saber se estamos educando nossos filhos dentro da cultura da paz e afinados com os Direitos Humanos. Nesse sentido entendo que violência no futebol, na escola, pegas de carros, e outras agressões no trânsito, o recorde de vendas de armas de fogo que o Brasil atingiu nos últimos anos, excesso de vaidades anabolizantes, a corrida louca pelo dinheiro e outros sórdidos sensos comuns integram para mim a cultura da guerra. Hoje, mesmo com casamento gay, preconceitos ainda destilam suas variadas conseqüências em nosso mundo contemporâneo que ainda mata mulher por “amor”. Então que evolução é essa? A que nos convoca esse novo tempo? Por isto e para isso escrevo, meus senhores, para que não fiquem impunes os cúmplices desse crime por atropelamento, para que os pais parem de uma vez por todas de armar seus filhos por fora oferecendo-lhes carrões, cartões de crédito sem limite, nenhum juízo, e passem a amá-los por dentro mostrando todos os valores que o dinheiro e o poder não compram, mas que podem salvar uma vida. Cissa, meu amor, quem me dera essas palavras pudessem restituir o tecido rasgado do seu peito nessa hora. Quisera poder adormecer seu coração, anestesiar o seu olhar sobretudo o que recordará a partida do seu fruto. Não posso. Só sei que o tempo fará com que, o que hoje é ausência, vire presença luminosa e eterna na sua memória e que você, o Raul e seus outros filhos construam com valentia e calma essa sublimação. Nem a morte apaga o que o amor construiu, isso eu sei. Termino essa crônica com o verso do tal poema que aqui está a serviço de seu coração generoso : “choram Meus filhos pela casa, eu sou a recessiva bússola, a cegonha, a garça, com o único presente na mão: saber que o amor só é amor quando é troca e a troca só tem graça quando é de graça.”

Beijos, sua

Elisa Lucinda.

Cada lição será repetida até que seja aprendida. Cada lição será apresentada a você de diversas maneiras, até que a tenha aprendido. Quando isto ocorrer, poderá passar para a seguinte.”

Elisa Lucinda (Escritora e atriz)
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Um comentário:

  1. Olá Berenice!
    Realmente esse episódio chocou a todos e eu também me pego a pensar nos inúmeros episódios que ocorrem a todo momento, que não são noticiados, mas que denunciam o quanto há de desrespeito à vida enraizado em pessoas inconseqüentes, alimentadas por um "amor" permissivo. Eu sempre digo aqui que por mais que se questione o estilo de educação de alguns pais, como no meu caso que sou mais severa e atenta com os meus filhos, não se enxerga que pessoas de bem criam os seus para perpetuarem o bem! Semeamos seres que poderão (e deverão) um dia tornar esse mundo um pouco mais florido. Não consigo pensar na dor de Cissa, aliás, consigo sim! O que não consigo (e Deus me proteja disso)é mensurar essa dor que deve estar dilacerada dentro dela. Rezo muito pelos meus e todos os filhos das pessoas que conheço ou não!
    Grande beijo,
    Jackie

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