quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Quando dois e dois são cinco - Ferreira Gullar

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Faz tempo que não toco, aqui, em assuntos políticos e, se volto ao tema hoje, é para refletir, junto com você, leitor, sobre um fato para mim inusitado. Certamente nem todos concordarão comigo ou simplesmente preferirão desconsiderar esse tipo de perplexidade. De qualquer modo, se eu estiver equivocado, peço-lhe desculpas, mas, sinceramente, neste caso, não opino, constato e com espanto. Constato o seguinte: a eleição de Dilma Rousseff à Presidência da República não me parece real.

Talvez não seja eu o único a pensar assim e que não só a mim a eleição dela pareça inusitada. Tendo a admitir que não. Pode ter ocorrido que, na tropelia da disputa política, meses de intensa propaganda, declarações, acusações, desmentidos, as pessoas se deixaram levar pela paixão e não pararam para refletir sobre o que acontecia. Disputa, seja na política seja no futebol, tende a nos cegar, a nos impedir de refletir e ponderar.

Não me excluo disso, tanto que só depois que a coisa se consumou, que os discursos cessaram, os debates acabaram e a Justiça Eleitoral a proclamou presidente eleita do Brasil é que me dei conta de quão surpreendente era tudo aquilo — isto é, de quão surpreendente é termos Dilma Rousseff como presidente do Brasil e que irá nos governar pelos próximos quatro anos. Se quiser entender meu espanto, siga este raciocínio: Dilma Rousseff nunca pretendeu candidatar-se a nenhum cargo eletivo. Embora tenha entrado para a política muito jovem, na época da ditadura, e continuado sua militância após a volta da democracia, jamais disputou eleição alguma.

Isso não teria importância em alguém que sempre se manteve à margem da política, o que não é o caso dela; daí a conclusão de que, se nunca se candidatou, foi porque essa não era a sua praia. Em vez disso, estudou economia e se contentou em ocupar cargos oficiais na área de sua especialização, chegando a ministra-chefe da Casa Civil da Presidência da República. Mas, de repente, essa pessoa que nunca disputou eleição nem para vereadora é lançada candidata à presidência da República. Acredita você que foi por vontade dela? Que um dia acordou e disse a si mesma: “Sabe de uma coisa, vou me candidatar a presidente do Brasil!”. Você não acredita nisso, claro, nem eu tampouco. O que aconteceu então?

Todo mundo sabe o que aconteceu: foi Lula quem decidiu isso e impôs a ela a decisão. Como acha você que terá reagido Dilma, ao ouvir de Lula a ideia de candidatar-se ao mais alto cargo eletivo do país, ela, que nunca se candidatou a cargo algum? Estou certo de que pediu um tempo para pensar e mal conseguiu dormir aquela noite. “Lula pirou”, terá dito ela a si mesma, imóvel na cama, olhando para o teto. “Eu, presidente do Brasil? É maluquice!” Claro, estava perplexa, mas, certamente, fascinada pela ideia, como Cinderela ao ver que o sapato da princesa procurada poderia caber em seu pé. Mas tinha dúvida: “Caberá mesmo?”. Aquilo mais parecia sonho que realidade.

O mesmo espanto senti eu e muita gente mais quando a coisa se revelou. Lula veio a público dizer que Dilma seria a candidata sua e do PT à Presidência da República. Não dava para acreditar. O PT também reagiu, tentou convencer Lula de que aquilo era um disparate, mas não conseguiu. Como sempre, prevaleceu a vontade do líder absoluto e incontestável.

Tudo isso se sabe, claro, mas pretendo é que se avalie bem o que ocorreu. Vamos adiante: porque nunca disputara eleições, era natural que não tivesse eleitores, muito menos para ganhar um pleito presidencial — ou seja, conquistar os votos de mais da metade de 130 milhões de eleitores. E chegou lá graças a Lula, que, para elegê-la, usou toda a máquina estatal e desconsiderou a lei eleitoral. O resultado é que temos, diante de nós, agora, uma presidente da República que é uma surpresa até para si mesma. Eleita sem ter votos! Eleita sem nenhuma experiência. É quase como um suplente de senador.

Olho para ela e me pergunto: essa senhora é de fato a presidente do Brasil ou se trata de uma personagem de novela? Acredito até que ela, às vezes, se belisca para ver se é mesmo verdade. O que não significa que fatalmente fará um mau governo, já que tudo é possível neste mundo surrealista latino-americano. Desejo-lhe boa sorte.

(Ferreira Gullar - Folha - 

Um comentário:

  1. Diria ao nobre poeta: deixe a amargura de lado e entenda que, no Brasil, geralmente as coisas acontecem por acaso. E muitas vezes, o acaso favorece a sorte. Temos uma presidente que nunca foi política, mas que tem todas as chances de ser uma boa administradora. Talvez seja disso que precisemos.

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