Leila aceitou a carona do André. Estava com sono, queria ir para casa e quando o André disse que a festa estava boa mas precisava ir embora e perguntou se alguém aceitava uma carona, hesitou só por dois segundos. Sabia, por experiência própria, o que significaria ficar sozinha com o André. Uma vez tivera que recorrer à força física para contê-lo, e mesmo com o nariz sangrando o André insistira. "Pô, Leilinha, só um beijinho". Outra vez ela até ameaçara pular do carro em movimento se ele não parasse com aquela mão. Mas Leila aceitou a carona. Afinal, sabia se defender. Se aprendera alguma coisa nos anos de convivência com o inconsequente André, era resistir aos seus avanços. Resistira ao André lamuriento. Resistira ao André infantil, pedindo como uma criança. Resistira ao André cantando boleros no seu ouvido. Resistira ao André se fazendo de louco apaixonado. Dez anos de avanços repelidos. Tinha prática.
* * *
Já estavam rodando uns 15 minutos em silêncio quando a Leila falou.
- Tou te estranhando, André.
- Por que?
- Estamos neste carro há meia hora e você ainda não me deu uma cantada.
- Pois é.
- "Pois é"?! O que queria dizer "Pois é"? E aquele tom sombrio?
- Sou eu, é? Eu não sou mais cantável?
- Não. Quié isso. Você continua linda. É que, sei lá. Desisti.
- Ainda bem. Porque você sabe que era um chato, não sabe?
- Sei, sei.
Ela examinou seu rosto. Perguntou:
- Você está com algum problema de saúde?
- Não, não.
- O que é então?
- É tudo, entende? Tudo. Desisti de tudo.
* * *
Não dava para acreditar. O André deprimido. Ela bem que notara que ele não parecia o mesmo, na festa. Não repetira as brincadeiras sem graça de sempre. "Atenção pessoal: concurso de peitos - mas só dos homens!". Não provocara os protestos de sempre agarrando a bunda das mulheres com quem dançava e explicando que ainda era do tempo do "cheek-to-cheek". E agora ali, sério daquele jeito. Grave. Não dava para acreditar, o André grave.
- O que foi? Uma desilusão amorosa?
- Não.
- Eu nunca topei as suas cantadas porque sabia que não era coisa séria. Foi para proteger a nossa amizade.
- Eu sei. A culpa não é sua.
- O que é, então?
- Desencanto. Sabe como é? Comigo mesmo. Com a humanidade em geral. Com tudo.
* * *
- Você quer subir pra conversar?
- Não. Obrigado, Leila. Não estou a fim.
- Só pra tomar alguma coisa. Desabafar.
- Não, não. Obrigado. Vou pra casa dormir.
Era como se ela estivesse falando com outro homem. O André em crise existencial ficara, o quê? Mais denso. Mais interessante. Leila perguntou:
- E se a gente fosse para um motel?
Ele sorriu tristemente.
- Não, Leila. Não precisa.
- Como, "Não precisa"?. Eu não estou sendo caridosa. Eu quero dormir com você.
- No estado em que eu ando, seria um fracasso. Para mim não seria uma transa, seria uma forma de psicoterapia heteroempática. Você não merece isso, Leilinha.
Não dava para acreditar, o André dizendo "psicoterapia heteroempática". Leila ficou ainda mais excitada. Ordenou:
- Vamos para um motel!
* * *
(Luis Fernando Verissimo - Fonte: http://literal.terra.com.br/verissimo/Novidades_Verissimo/Estadao/Estranhando_o_Andr%E9_12_jun_2005.pdf)
Muito interessante, parabéns pelo post.
ResponderExcluirAbraço.
Escolher um texto é uma forma de escrevê-lo, parabens.
ResponderExcluirum abraço.
Mauricio.
Adoroo esse texto!!!Muito bem escolhido...beijos,
ResponderExcluirNatalia