segunda-feira, 4 de abril de 2011

O Popular - Luis Fernando Verissimo






Um número recente da Veja trazia fotografias sensacionais das (como diria um inglês) “incomodações” na Irlanda do Norte. Todas eram de ganhar prêmio, mas uma me impressionou especialmente. Nela aparecia a versão irlandesa do Popular.  

É uma figura que sempre me intrigou. A foto da Veja mostra um soldado inglês espichado na calçada, protegido pela quina de um prédio, o rosto tapado por uma máscara de gás, fazendo pontaria contra um franco-atirador local. Atrás dele, agachados no vão de uma porta, dois ou três dos seus companheiros, também em plena parafernália de guerra, esperam tensamente para entrar no tiroteio.  

Há fumaça por todos os lados, um clima de medo e drama. Mas ao lado do soldado que atira, em primeiro plano, está o Popular. De pé, olhando com algum interesse o que se passa, com as mãos nos bolsos e um embrulho embaixo do braço. O Popular foi no armazém e na volta parou para ver a guerra. 

Sempre pensei que o Popular fosse uma figura exclusivamente brasileira. Nas nossas incomodações políticas, no tempo em que ainda havia política no Brasil, o Popular não perdia uma. Os jornais mostravam tanques na Cinelândia protegidos por soldados de baioneta calada e lá estava o Popular, com um embrulho embaixo do braço, examinando as correias de um dos tanques. Pancadaria na Avenida? Corria polícia, corria manifestante, corria todo mundo, menos o Popular. O Popular assistia. Cheguei a imaginar, certa vez, uma série de cartuns em que o Popular aparecia assistindo ao Descobrimento do Brasil, à Primeira Missa, ao Grito da Independência, à Proclamação da República...  

Sempre com seu embrulho debaixo do braço. E de camisa esporte clara para fora das calças. (O Popular irlandês veste terno e sobretudo contra o frio. O Popular tropical é muito mais Popular.) 

Não se deve confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido como o Passante. O Transeunte ou Passante às vezes leva uma bala perdida, o Popular nunca. O Transeunte às vezes vai preso por engano, o Popular é que fica assistindo à sua prisão. O Transeunte, não raro, se compromete com os acontecimentos. Aplaude o visitante ilustre que passa, por exemplo. O Popular fica com as mãos nos bolsos e quase sempre presta mais atenção ao motociclo dos batedores do que à figura ilustre. O Transeunte pode se entusiasmar momentaneamente com uma frase de comício ou um drama na rua, e aí o Popular é que fica olhando para o Transeunte.

O Popular não tem opinião sobre as coisas. Quando o rádio ou a televisão resolvem ouvir “a opinião de um popular” na rua, sempre se enganam. O Popular nunca é o entrevistado, é o sujeito que está atrás do entrevistado, olhando para a câmara. 

O Popular não merece nem os méritos nem a calhordice que a imprensa lhe atribui. Alguém que é “socorrido por populares”, outro, menos feliz, que é linchado por populares... Engano.  

Onde há um bando de populares não há o Popular. O Popular é a antimultidão. Sua única virtude é a sua singularidade. E um certo ceticismo inconsciente diante da História e das coisas. Não é que o Popular desmereça o Poder e os grandes lances da Humanidade, é que ele tem uma fatal curiosidade pelo detalhe supérfluo, um fascínio irresistível pelo insignificante. Nas revoluções, o que atrai o Popular é a estranha postura de um soldado deitado no chão, o mecanismo de um tanque, as lentes de uma câmara. 

O Popular é uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo. Seu habitat natural é a margem dos acontecimentos. E - este é o seu maior mistério, a chave da sua existência - ninguém jamais conseguiu descobrir o que o Popular leva naquele embrulho. E tem mais. O dia em que pegarem um Popular para desvendarem um mistério, será inútil. Vão se enganar outra vez. O Popular verdadeiro estará atrás do preso, assistindo a tudo.


(Luis Fernando Verissimo -  Este texto está no livro O Popular. - Fonte: 
http://literal.terra.com.br/verissimo/porelemesmo/porelemesmo_analista.shtml?porelemesmo)

4 comentários:

  1. É quase feito aquele cara que não tem cheiro, do filme O Perfume, Patrick Suskind.

    A diferença deste Popular, sonso e quase um tolo, porque não fede nem cheira, mas dá volume, é porque senão fosse ele, não teria enchimento nas fotos, não teríamos o contraste na multidão.

    Então, viva O Popular!

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  2. É quase feito aquele cara que não tem cheiro, do filme O Perfume, Patrick Suskind.

    A diferença deste Popular, sonso e quase um tolo, porque não fede nem cheira, mas dá volume, é porque senão fosse ele, não teria enchimento nas fotos, não teríamos o contraste na multidão.

    Então, viva O Popular!

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