O poder, por definição, se personifica. É da política que o líder seja responsabilizado pelos bons e maus momentos, e que eles sejam associados a seus atributos pessoais. Desde Creonte, que pagou preço alto por supor que estava acima de vontades privadas – como o desejo de Antígona de enterrar seu irmão, Polinice – e por se dizer representante de uma coletividade como se esta não fosse composta de individualidades, sabemos que não há governo sem um rosto. É por isso que Lula é visto como um presidente bem-sucedido, por mais defeitos que parecia ter antes de assumir, ou que a popularidade de Obama é manchada por um crime ambiental cometido por uma indústria inglesa. Na chamada Era da Informação, essa percepção deveria ser refinada, ao menos um pouco, e a opinião pública deveria pesar melhor os fatores relativos. Mas a moderna cultura da fama só fez prolongar a confusão entre homens e cargos.
Não pense que isso seja exclusivo de regimes presidencialistas ou republicanos. Veja as trocas constantes de primeiros-ministros em países como Inglaterra e Japão, cujas famílias reais já catalisam tanto as atenções sobre as vidas particulares dos donos do poder, e o pastelão em torno de Berlusconi e seus hábitos na Itália. Há um aspecto saudável em tudo isso: observando o poder por seus representantes, ele deixa de ser um ente abstrato e assim se presta à crítica e à sátira. (No caso dos ditadores, o que existe é um hiato arbitrário, pois nada é mais ridículo do que um Hitler, Stalin ou Mussolini para quem não está sob seu jugo ou para quem os vê depois do fim.) E de fato os governantes ainda são sujeitos em condições de tomar decisões que afetam grande número de pessoas, para o bem ou o mal. Há, porém, um aspecto nada saudável: a falta de compreensão desses mecanismos políticos.
O sociólogo francês Jacques Ellul chamou isso de “ilusão política”, ou seja, a ilusão de que escolhemos nossos governantes por critérios claros e de que eles farão o possível dentro das diretrizes que lhes damos. Tal pressuposto, digo eu, é cheio de equívocos. O primeiro é o de que uma sociedade produz candidatos à sua altura; se não são bons, é porque ela ainda não os merece. Ouço de vez em quando elogios ao fato de que o Brasil dispõe em 2010 de opções como Dilma, Serra e Marina, que afinal não são nem oligarcas retrógrados nem pessoas despreparadas. Mas os três têm uma visão datada da economia atual e das demandas brasileiras atuais, tanto é que se limitam a uma agenda vaga, como a promessa de melhorar a infraestrutura, ou a uma agenda específica, como o ambientalismo. Assim como na seleção de Dunga, trata-se de uma repaginação, não de uma renovação. Onde estão os bons políticos jovens?
O segundo equívoco é a crença de que os critérios são claros, de que os votos são dados racionalmente. A grande maioria dos brasileiros diz que aprova Lula, mas na verdade aprova o bom momento da economia – baixo desemprego, baixa inflação, crédito maior – e, por extensão, põe em segundo plano o mau momento da política, porque a sucessão de escândalos com o dinheiro público só confirma a noção de que todos são corruptos há séculos e, logo, não é este ou aquele que vai mudar isso em alguns anos. Como Dilma e Serra parecem oferecer mais do mesmo, os motivos tendem a se tornar ainda mais inconscientes. Credibilidade e simplicidade angariam mais votos que qualquer projeto. Assim tem sido a história da humanidade: aos períodos utópicos, em que ideias mirabolantes comovem as massas, seguem-se os tempos cínicos, em que o bom líder é aquele que não deixa faltar feijão no meu prato.
Mais complexo no Brasil é o terceiro equívoco, o de achar que mantemos os políticos sob nosso comando depois que são eleitos. A imprensa apura o que pode, ainda que na maioria das vezes o que chama de “furo” é apenas a declaração bombástica de algum poderoso contrariado (como Pedro Collor e Roberto Jefferson), e as entidades como Polícia Federal e Ministério Público tentam cercear as autoridades, embora submetidas demais aos interesses de outras autoridades (basta ver a impunidade de Delúbios, Waldomiros e tantos mais). Para a maioria dos cidadãos, o trato com as instâncias oficiais é sinônimo de desagrado: fiscais movidos a propinas, policiais metidos em máfias, serviços de péssima qualidade, sindicatos cooptados por verbas. A sociedade obriga a votar, mas tem poucas instituições livres que possam controlar os eleitos, que muitas vezes compram votos em troca de algumas telhas. É por isso que em alguns países desenvolvidos, onde as instituições são fortes, pode haver trocas em altas funções sem que abalem tudo.
A economia vai muito bem, até aquecida demais neste primeiro semestre, e isso por mérito da sociedade como um todo, em primeiro lugar, por méritos de governos anteriores, em segundo, e por méritos deste governo, em terceiro. Há, porém, muito mais fatores que não dependem de méritos coletivos ou individuais: a conjuntura internacional tem favorecido, sim, principalmente para vender commodities. E nunca é demais lembrar que não foi apenas o Brasil que acabou com a inflação e fez privatizações nos anos 90. É verdade que a depender do PT esses avanços não teriam se consumado, a tal ponto que Lula se viu obrigado a mudar de rumo; mas não foi nenhuma genialidade tucana que os concebeu. O mundo soprava naquela direção.
O crescimento econômico conta votos para as autoridades correntes, mas não elimina os problemas pela mera inércia. Nesta semana, por exemplo, o “impostômetro” em São Paulo indicou que o governo já arrecadou R$ 500 bilhões neste ano; ou seja, só a partir daqui trabalharemos para nós mesmos, e não para a máquina pública. Há uma clara demanda na sociedade para que a carga tributária seja reduzida, mas sai governo, entra governo e ela cresce mais veloz que o PIB. Para dar exemplo fora da economia, o que dizer do acordo de Lula com o ditador Mahmoud Ahmadinejad, essa sim uma mancha em qualquer currículo antidireitista? A maioria dos brasileiros é contra, mas isso não faz a menor diferença. O povo só é consultado na hora de votar no “mal menor”.
Nessa perspectiva, o bom político fica sendo o malandro, aquele que leva elogios pelo que não fez e fica ileso aos ataques pelo que fez. Mas a democracia é o menos ruim dos sistemas porque pode ser aprimorada; e aprimorá-la hoje, com todos os meios de informação e tecnologia disponíveis, implica continuar reduzindo a ignorância dos cidadãos e ampliando a transparência da máquina. Autoridades não podem ser vistas como celebridades; são pessoas falíveis e devem ser cobradas pelas falhas que cometem no exercício de poder. E isso não se faz apenas com votos.
(Daniel Piza - "O Estado de São Paulo)
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