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Há pouco mais de dois anos, um renomado autor de novelas globais declarou em uma entrevista à revista Veja que, segundo as diversas pesquisas que tinha em mãos, podia afirmar que estava ocorrendo certo relaxamento moral na consciência do brasileiro médio. As pessoas, dizia ele, já não condenavam certas atitudes totalmente antiéticas, por parte dos personagens das suas tramas, desde que agir dessa forma fosse essencial para que atingissem os seus objetivos. Na época ninguém deu a atenção devida a esse abalizado sinal de alerta dado pelo noveleiro. Eu, pessoalmente, confesso que fiquei bastante preocupado.
A média das pessoas não sabe, mas uma das principais razões do sucesso das novelas globais é o fato de a emissora promover sistematicamente exaustivas pesquisas de profundidade, com pessoas representativas de cada um dos diversos segmentos sociais, para saber o que a opinião pública acha ou espera de cada personagem. Pode-se dizer que as novelas são, na prática, as “instituições” mais democráticas da Nação. Não existe enredo inflexível ou pré-elaborado. O que há, no máximo, é uma sinopse bastante vaga. As tramas evoluem de acordo com o que o público almeja; os personagens crescem ou, até mesmo, desaparecem, em razão da receptividade que logram obter junto aos telespectadores. A Globo não brinca em serviço. O custo de produção de um único capítulo de novela está entre R$ 50 mil e R$ 100 mil. O milionário faturamento em comerciais varia de acordo com os pontos de audiência. Em outras palavras, a emissora não pode se dar ao luxo de errar. Esta é a razão pela qual as pesquisas são realizadas com tanta freqüência. Todos os personagens têm de se comportar de acordo com o que a sociedade espera deles. Um personagem que represente um jovem ambicioso da classe C, por exemplo, tem de agir de modo coerente com as expectativas que se tem em relação a uma pessoa com tais características. Caso o personagem tenha atitudes inautênticas, as pesquisas captam isso e o autor ajusta o seu comportamento.
É por essa razão que as pesquisas globais têm de ser levadas muito a sério. Quando um autor de novelas afirma, como é o caso, que está ocorrendo um “relaxamento moral” na sociedade, longe de ser um mero palpite, ele sabe muito bem o que está dizendo. Pode-se esperar, porque as conseqüências disso não tardarão a surgir. E não se restringirão, infelizmente, ao terreno da ficção.
De fato, pouco tempo depois, ocorreu a série de escândalos políticos relacionada ao “mensalão”. Em épocas normais, o presidente da República seria impedido e os parlamentares envolvidos jamais lograriam passar novamente pelo teste das urnas. Não foi nada disso o que ocorreu. O presidente não só não foi impedido, como também conseguiu ser reeleito e a maioria dos parlamentares corruptos disputou e venceu as eleições de 2006.
Infelizmente, essa tolerância moral e ética da sociedade continua a existir. Os partidos de oposição se esforçam ao máximo para encontrar e denunciar novos escândalos e a sociedade, como que anestesiada, confere ao atual presidente um índice de popularidade raramente alcançado por qualquer um de seus antecessores.
Esse fenômeno é muito grave. Não há tecido social que não se esgarce quando os mais caros valores morais são “relativizados” e os mais condenáveis comportamentos são julgados com tamanha condescendência pela opinião pública. Já vivemos, no passado, em épocas com tais características. E o desfecho, no mais das vezes, foi trágico.
Uma sociedade que, qual a Sodoma bíblica, se descuida dos seus mais elementares valores, merece ser extinta. Como a extinção, a não ser em caso de guerra, é impossível, o que ocorre, quase sempre, é um retrocesso drástico no campo das relações sociais. Todos passam a desconfiar de todos, ninguém acredita mais em ninguém e todo mundo perde muito com isso. Uma sociedade, com tais características, demonstra que, simplesmente, perdeu a sua auto-estima. Quem perde a auto-estima, perde também a autoconfiança. E, sem autoconfiança, nenhum grupamento social ousa empreender ou mesmo assumir riscos. O resultado, a médio e longo prazos, é o atraso, a estagnação e a perda irrecuperável da virilidade cívica – algo fundamental e imprescindível para a evolução e o progresso de qualquer civilização.
É uma pena que seja assim. Ainda nos arrependeremos amargamente de nossa tolerância atual. Um povo que não acredita em si mesmo, não merece o crédito dos outros. Um povo que não se dá ao respeito, acaba não sendo mais respeitado por ninguém.
Ao que parece, o único santuário dos valores morais de nossa sociedade se situa no coração da classe média, aquele segmento social cheio de pruridos que a companheirada petista, desdenhosamente, chama de “pequena burguesia”. Eu sinto que faço parte dela. Eu ainda me escandalizo com cada nova falcatrua oficial, ainda espero que os corruptos sejam exemplarmente punidos, ainda não perdi a capacidade de me indignar. Felizmente, esta camada social, apesar de minoritária, é convicta de seus valores e jamais transige com relação à moral. A sociedade, como um todo, pode temporariamente se afastar do caminho correto. Mas ela sempre, quando se dá mal, volta a centrar-se e a ter como referência esse diminuto grupo de moralistas renitentes. Eu não me envergonho de ser um “pequeno burguês”. Resta-me, por consolo, ao menos o prazer de poder, sem culpa, repousar no meu travesseiro.
( João Mellão Neto -Artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”)
quinta-feira, 3 de junho de 2010
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