domingo, 7 de novembro de 2010

Monteiro Lobato no tribunal literário

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O parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) de que o livro ""  Caçadas de Pedrinho"   deve ser proibido nas escolas públicas, ou ao menos estigmatizado com o ferrão do racismo, instala no Brasil um tribunal literário.

A obra de Monteiro Lobato, publicada em 1933, virou ré por denúncia - é esta a palavra do processo legal - de um cidadão de Brasília, e a Câmara de Educação Básica do Conselho opinou por sua exclusão do Programa Nacional Biblioteca na Escola.

Na melhor das hipóteses, a editora deverá incluir uma "nota explicativa" nas passagens incriminadas de "preconceitos, estereótipos ou doutrinações". O Conselho recomenda que entrem no índex "todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante".

Se o disparate prosperar, nenhuma grande obra será lida por nossos estudantes, a não ser que aguilhoada pela restrição da "nota explicativa" -  a começar da Bíblia, com suas numerosas passagens acerca da "submissão da mulher", e dos livros de José de Alencar, Machado de Assis e Graciliano Ramos; dos de Nelson Rodrigues, nem se fale. Em todos cintilam trechos politicamente incorretos.

Incapaz de perceber a camada imaginária que se interpõe entre autor e personagem, o Conselho vê em "Caçadas de Pedrinho" preconceito de cor na passagem em que Tia Nastácia, construída por Lobato como topo da bondade humana e da sabedoria popular, é supostamente discriminada pela desbocada boneca Emília, "torneirinha de asneiras", nas palavras do próprio autor: "É guerra, e guerra das boas".

Não vai escapar ninguém -nem Tia Nastácia, que tem carne negra". Escapou aos censores que, ao final do livro, exatamente no fecho de ouro, Tia Nastácia se adianta e impede Dona Benta de se alojar no carrinho puxado pelo rinoceronte: "Tenha paciência - dizia a boa criatura. Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá...".

Não seria difícil a um intérprete minimamente atento observar que a personagem projeta a igualdade do ser humano a partir da consciência de sua cor. A maior extravagância literária de Monteiro Lobato foi o Jeca Tatu, pincelado no livro "Urupês", de 1918, como infamante retrato do brasileiro. Mereceria uma "nota explicativa"?

Disso encarregou-se, já em 1919, o jurista Rui Barbosa, na plataforma eleitoral "A Questão Social e Política no Brasil", ao interpretar o Jeca de Lobato, "símbolo de preguiça e fatalismo", como a visão que a oligarquia tinha do povo, "a síntese da concepção que têm, da nossa nacionalidade, os homens que a exploram".

Ou seja, é assim que se faz uma "nota explicativa": iluminando o texto com estudo, reflexão, debate, confronto de ideias, não com censuras de rodapé. 


O caráter pernicioso dessas iniciativas não se esgota no campo literário. Decorre do erro do multiculturalismo, que reivindica a intervenção do Estado para autonomizar culturas, como se fossem minorias oprimidas em pé de guerra com a sociedade nacional.

Não tem sequer a graça da originalidade, pois é imitação servil dos Estados Unidos, país por séculos institucionalmente racista que hoje procura maquiar sua bipolaridade étnica com ações ditas afirmativas.

A distorção vem de lá, onde a obra de Mark Twain, abolicionista e anti-imperialista, é vítima dessas revisões ditas politicamente corretas. País mestiço por excelência, o Brasil dispensa a patacoada a que recorrem os que renunciam às lutas transformadoras da sociedade para tomar atalhos retóricos.

Com conselheiros desse nível, não admira que a educação esteja em situação tão difícil. Ressalvado o heroísmo dos professores, a escola pública se degrada e corre o risco de se tornar uma fonte de obscurantismo sob a orientação desses "guardiões" da cultura. 

 
(Aldo Rebelo - Fonte: Folha de S.Paulo)




CONHEÇA A CRIADORA DA POLÊMICA

 
Nilma Lino Gomes



Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1988), mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1994), doutorado em Ciências Sociais (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (2002) e pós-doutorado em Sociologia pela Universidade de Coimbra - Portugal (2006). 

Atualmente é professora adjunta do Departamento de Administração Escolar da Universidade Federal de Minas Gerais, Bolsista de Produtividade/CNPQ e coordenadora-geral do Programa Ações Afirmativas na UFMG.  

Tem experiência na área de Educação e Antropologia, com ênfase em Antropologia Urbana, atuando principalmente nos seguintes temas: 

- organização escolar, 
- formação de professores para a diversidade étnico-racial, 
- movimentos sociais e educação, 
- relações raciais, 
- diversidade cultural e gênero
 

(http://sites.google.com/site/posfaenilmagomes/) 
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6 comentários:

  1. Bela postagem!

    Parabéns ao deputado Aldo Rebelo, que eu não sabia, é também jornalista. Seu artigo dá bem a idéia de como a discriminação é rasteira e triste, principalmente quando quando nasce pela iniciativa dos que se dizem "discriminados".

    Perfeita a observação de Rebelo: "Com conselheiros desse nível, não admira que a educação esteja em situação tão difícil. Ressalvado o heroísmo dos professores, a escola pública se degrada e corre o risco de se tornar uma fonte de obscurantismo sob a orientação desses "guardiões" da cultura".

    Repito: bela postagem!

    Um abração, Berenice!

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  2. Parabéns por compartilhar rico texto de Aldo Rebelo. Acredito que há conselhos demais e que estes conselheiros precisam justificar seus salários e ficamm inventando onda. O que seria então de todos esses livros..Escrava Isaura...com certeza mais um "caçado". Li quase toda a obra de Monteiro Lobato na minha infância, o que só reforçou valores como, afeto, carinho,respeito ao próximo e igualdade.

    Esse merece ser repassado!!!, bjus

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  3. Parabéns pela postagem e pelo que entendi também essa discriminação já nasce no coração desses que se acham discriminados!!!

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  4. Well, daqui a pouco vão querer censurar obras com base em religião, gênero, erotismo já estoupensando o que vai acontecer com Jorge Amado.......Adorei ler o texto do Aldo Rebelo, e sempre admirei suas posições políicas e sua ponderação.Gostaria de lembrar que lutamos contra a censura nos anos de chumbo sabemos bem como isso infantiliza um povo,não é censurando as Caçadas de Pedrinho que se deixa de ser preconceituoso, aliásem que isso contribui para minimizar o preconceito? Vale lembrar que a leitura de Monteiro Lobato tem sido um tanto quanto esquecida nas escolas de modo geral...Outro aspecto: Será que Nilma leu o trabalho de Fúlvia Rosemberg?Será que entendeu o que Marisa Lajolo desenvolveu ao longo de todos esses anos?
    abraços

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  5. Nossa!

    Querem censurar Monteiro Lobato por preconceito não é mesmo? Acho muito legal que os esquerdistas queiram lutar por liberdade, respeito e tolerância, isso mesmo, tá certo né não, gente?

    Preconceito é coisa do passado, precisa ser eliminada. Então vamos lá acabar com a droga do funk (machista, imoral, indecente, pornográfico e homofóbico), o BBB (atentado ao pudor, pornografia e indecente), o rebolation e variações...

    Mas, nossa! Pq vcs estão fugindo, esquerda, por quê?

    Esse povo que enche a boca pra descer a lenha no grande Monteiro Lobato nunca fala mal de certas indecências de nossa sociedade, engraçado né...

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