sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sem olhos em casa

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 Governantes populistas, além de lançarem mão de um farto assistencialismo, se esmeram em dificultar o acesso dos cidadãos à informação variada


Segundo Karl Mannheim, uma sociedade moderna dificilmente consegue escolher bem o seu futuro sem a presença de intelectuais independentes. Somente eles, com seu saudável poder corrosivo, são capazes de garantir a existência de uma opinião pública crítica.

Para fazê-lo, contudo, os intelectuais precisam defender o seu direito de pensar como melhor lhes pareça e recusar a adesão canina a esta ou àquela ideologia, a este ou àquele partido.


A sua falta de identidade coletiva -de "espírito de manada"- é o que lhes proporciona a autonomia imprescindível à realização de sua missão: examinar, sem descanso, as soluções conflitantes de um problema antes de rejeitá-las ou de assimilá-las.


Todavia, por rever constantemente as suas opiniões, a intelectualidade "não engajada" é vista com reservas pelos adeptos do ideal gramsciano de "intelectual orgânico", paladino de "sua classe". Estes não suportam o inquietante inconformismo das mentes livres, as quais se encontram, por isso mesmo, em grande perigo nos regimes populistas.


Tal fato, infelizmente, nem sempre é percebido com clareza, já que, ao contrário dos ditadores declarados -que eliminam os intelectuais indesejáveis sem nenhum pudor-, os governantes populistas preferem atuar de modo mais discreto.
Buscam, inicialmente, cooptar a intelectualidade "rebelde", minando-lhe a independência por meio de favores.


Se não o conseguem, procuram desacreditá-la perante a população, o que se dá não tanto pelo confronto direto, mas pelo ataque aos meios de comunicação pelos quais se expressa, que são acusados de serem "contra o governo", ou, ainda pior, de serem "contra o povo".


A artimanha, porém, só funciona quando o aparato crítico dos indivíduos aos quais se dirige apresenta um nível rudimentar, resultado das graves deficiências educacionais de que padece a maioria da população nesses regimes: pessoas esclarecidas não se deixam engabelar por pregações descabidas.


É por isso que os governantes populistas, além de lançarem mão de farto assistencialismo e de retórica demagógica pela qual se apresentam como "pais do povo" e "salvadores da pátria", tanto se esmeram em dificultar o acesso dos cidadãos à informação diversificada.
E o fazem seja pela restrição "bem-intencionada" à liberdade de imprensa, seja pela utilização de instrumentos próprios, como as redes de TV "públicas", que funcionam, quase sempre, como veículos da propaganda oficial.


O populismo deforma os cidadãos como nenhum regime autoritário é capaz de fazê-lo. Ele os perverte desde dentro, destruindo a sua resistência crítica. Ele os faz crer que são suas as razões que o regime neles implanta sutilmente.


Ele os convence de que a loucura que os acomete constitui uma maneira mais lúcida de ver as coisas.


As vítimas do populismo, ofuscadas por essa luz malsã não só não lamentam como até comemoram a destruição do pensamento independente. Ao fazê-lo, porém, colocam-se, ingenuamente, ainda mais à mercê dos hábeis governantes, dóceis e desarmadas, sem olhos em casa.






(CLÁUDIO L. N. GUIMARÃES DOS SANTOS, 50, escritor, médico e diplomata, é mestre em artes pela ECA-USP e doutor em linguística pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França). Blog: http://perplexidadesereflexoes.blogspot.com/)

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