Longe dos quintais e da liberdade do passado, elas ficam cada vez mais enclausuradas e vivem os males da ansiedade
Pare um pouquinho e relembre a infância de antigamente. Pés no chão, banhos de chuva, brincadeiras na rua, horas intermináveis sem ter o que fazer, que rendiam muito. Agora olhe para as crianças de hoje. Agenda de executivo, sem tempo para brincar, conversa de adulto, horas no computador, tevê e videogame.
Não é a toa que entre 9% e 15% da população de 5 a 16 anos, no mundo todo, sofre de ansiedade. O número é da Associação Americana de Transtornos de Ansiedade.
Não estamos falando daquela impaciência ou até mesmo aflição que se abate sobre as crianças antes da festa de aniversário ou do Natal. Essa espera é saudável e está dentro da normalidade. Passa a ser problema quando extrapola alguns limites.
“É normal que eu espere que as pessoas venham à minha festa. Mas escapa do natural quando começo a ligar todos os dias para saber se elas vêm”, diferencia a psicóloga Fernanda Roche, mestre em Saúde Mental Infantil e coordenadora do Espaço de Desenvolvimento Infantil Criança em Foco.
Exagerada, a ansiedade paralisa. O que não combina nada com infância. O que tem levado as crianças a sofrer com problemas típicos de adultos?
Agenda de executivo
As mudanças sociais explicam muito. Se antes elas tinham bastante tempo livre – bom para regular o aparelho psíquico – hoje há um excesso de atividades. Pior: sempre dirigidas por um adulto, seja em casa, na escola ou no parque.
“A criança é muito dinâmica e tem muita energia. O mundo ficou perigoso e ela foi tolhida de sua liberdade de sair na rua, de ir a pé ou de bicicleta para a escola. Fica confinada nos apartamentos e ambientes fechados. Na escola, sentada por horas. Essa não é a dinâmica da criança. A energia fica retida, não aflora”, analisa a pediatra homeopata Tami Seitt.
Elas estão cada vez mais presas e cheias de cobranças. “Hoje a criança precisa ter uma performance adequada. A escola pega muito no pé, ela precisa ter notas. E, quando troca letras – o que é normal –, a mãe já acha que tem dislexia. É muita pressão”, afirma o psicólogo Marcos Meier, mestre em Educação.
O perfeccionismo dos pais, aliás, é mais um ingrediente dessa receita. Quando eles erram e ficam irritados, o filho percebe e imagina que também não pode errar. Isso gera medo. E o medo é a raiz da ansiedade.
Junte-se a isso a superproteção, tão comum nos dias de hoje. É um tal de “não sobe aí, menino”, “você vai se machucar”, “não fale com ninguém”, “cuidado” pra cá e “cuidado” pra lá que a criança fica achando que o mundo é muito perigoso, além de não desenvolver a autonomia. “Elas ficam dependentes, não confiam em si, não resolvem seus problemas”, diz Meier.
O próprio estresse dos pais reflete nos filhos. “Estudos comprovam que nos três primeiros anos de vida se estabelecem padrões de comportamento. E que fatores socioambientais interferem na genética. Crianças que são expostas a situações de tensão no início da vida podem ter alterada a capacidade para lidar com o estresse para o resto da vida”, explica a psicóloga Ely Harasawa, gerente de programas da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, de São Paulo.
A irritação paterna tem ainda outro efeito: o filho pode achar que a culpa é dele. Aí, o sentimento de inadequação vai às alturas.
Outro elemento prejudicial é a falta de rotina. “Aquela família destrambelhada, na qual a criança nunca sabe o que vai acontecer, gera muita ansiedade. Saber a rotina traz segurança, tanto na família quanto na escola”, diz Meier.
A tranquilidade da criança também é quebrada pela alta exposição ao mundo adulto. Ela participa das conversas dos pais, assiste aos noticiários e às novelas desde muito pequena. E, como geralmente fica acordada até muito tarde, está exposta a programas inadequados para sua idade, com cenas de violência e sexo. Ela pode pensar que aquilo vai acontecer com ela. De novo, o medo.
Além das causas ambientais, a genética tem um peso grande nessa história. “A maior parte das crianças com transtorno de ansiedade tem pais ansiosos”, diz a médica psiquiatra Silvia Mariama, do Ambulatório de Transtornos de Ansiedade da Infância e Adolescência da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro.
Consequências
A curto prazo, se não tratada, a ansiedade traz prejuízos na aprendizagem. Tanto porque a criança não dorme direito ou menos que o necessário quanto como forma de chamar a atenção dos pais.
Ela também incorpora comportamentos medrosos, não consegue fazer nada sozinha, depende sempre da aprovação dos outros. Quando cresce, não aceita desafios, não concorda com promoções no trabalho por medo, sempre acha que não vai dar conta, que não vai dar certo. Na adolescência, podem se estabelecer padrões de comportamentos antissociais e até delinquentes.
Embora esteja muito associada ao mundo contemporâneo, existe prevenção e tratamento para os estados de ansiedade. E, assim como boa parte da origem dos problemas vêm dos pais, as soluções também. O trabalho é árduo, mas remar contra a maré não só é possível como dá muito certo.
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