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Quando me perguntam a profissão e eu digo que sou escritor, logo vem outra em cima: de quê? De tudo, minha senhora. De tudo, menos de bula. Romance, cinema, teatro, televisão, crônicas, ensaios, tudo-tudo, menos bula!
Uma vez, num barzinho, uma gatinha me perguntou o que eu escrevia e disse que escrevia bula. Ela não deu a menor atenção para mim. Se dissesse que era cronista do Estadão talvez tivesse mais sucesso. Por que o preconceito contra as geniais bulas? Quando é bula papal todo mundo leva a sério, mesmo que seja para dizer que não se pode fazer amor sem a intenção da procriação (que palavra mais animal!).
Não que eu não aprecie as bulas. Pelo contrário. Adoro lê-las. E com atenção. E, sempre, depois de ler uma, já começo a sentir todas as reações adversas.
Admiro, invejo esse colega que escreve bulas. Fico imaginando a cara dele, como deve ser a sua casa. Que papo tal escrivão deve levar com a mulher e com os vizinhos?
Tal remédio é contra-indicado a pacientes sensíveis a benzodiazepinas e em pacientes portadores de miastenia gravis. Dá vontade de telefonar para o autor e perguntar como é que eu vou saber se eu sou sensível e porador?
Quanto ele ganha por bula? Será que ele leva os obrigatórios 10% de direitos autorais? Merecem, são gênios.
Jamais, numa peça de teatro, num roteiro de filme ou mesmo numa simples crônica conseguiria a concisão seguinte: é apresentado sob forma de solução isotônica (que lindo!) de cloreto de sódio, que não altera a fisiologia das células da mucosa nasal, em associação com cloreto de benzalcônio. Sabe o que é? O velho e inocente Rinosoro.
Vejam o texto seguinte e sintam na narrativa como o autor é sádico: você poderá ter sonolência, fadiga transitória, sensação de inquietação, aumento de apetite, confusão acompanhada de desorientação e alucinações, estado de ansiedade, agitação, distúrbios do sono, mania, hipomania, agressividade, déficit de memória, bocejos, despersonalização, insônia, pesadelos, agravamento da depressão e concentração deficiente. Vertigens, delírios, tremores, distúrbios da fala, convulsões e ataxia. Pronto, tenho que ir ao dicionário ver o que é ataxia: incapacidade de coordenação dos movimentos musculares voluntários e que pode fazer parte do quadro clínico de numerosas doenças do sistema nervoso.
Já tá sentindo tudo que foi descrito acima?
Quem mandou ler?
E que tem úlcera pélvica não pode tomar remédio nenhum. Está condenado à morte? Toda bula odeia essa tal de úlcera pélvica. As demais úlceras entram como coadjuvantes nos textos dos autores buláticos (tem a palavra no Aurélio).
E as gestantes (é como os buláticos chamam a grávida)? Elas não podem tomar nenhum remédio. Os nobres coleguinhas protegem a gravidez.
Para todo remédio uma bula diferente, um estilo próprio, um jeito de colocar a vírgula diferente.
Tudo isso para dizer que outro dia, na cama, com a parceira amada, pego uma camisinha na mesinha e abro. Sabe o que estava escrito lá dentro? Parabéns! Você adquiriu o mais avançado e seguro preservativo do mercado brasileiro. Era uma bula. Escrita por algum conhecedor, é claro, dentro da caixinha da camisinha. Claro que me entusiasmei e segui a leitura deixando a amada de lado. Brochei, é claro. Mas, em compensação, fiquei sabendo que o agente espermicida nonoxinol é contra as DSTs.
Depois dessa informação, aí sim, voltei para a alcova.
Mas e a amada, onde estava?
E lembre-se sempre: todo medicamento deve ser mantido fora do alcance das crianças. E não tome remédio sem o conhecimento do seu médico. Pode ser perigoso para a sua saúde.
E pra cabeça!
Agora, falando sério. Admiro os escritores de bula. Assim como invejo os poetas. Talvez por nunca ter sido convidado (nem teria experiência) para escrever uma e nunca tenha conseguido escrever um poema. Sempre gostei de escrever as linhas até o final do parágrafo.
Para mim o poeta é um talentoso preguiçoso. Nunca chega ao final da linha. Já repararam?
Já o bulático, esse sim, é um esforçado poeta!
(Mario Prata - Estadão, 30/03/97 - Cem melhores Crônicas 2007)
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Trabalhar com o comum, o dia a dia, o prático não é valorizado... rsrs
ResponderExcluirAlguém tem que fazer o sem graça para que todos sigam em segurança.
Agradeçamos então os buláticos!
Bjs!
Rsrs. Sem palavras. E mesmo que aqui soltasse mil palavras, não definiria o quão delicioso foi ler a cronica. Claro! Não é atoa, que está entre as cem melhores.
ResponderExcluirParabéns pela escolha do texto. magnífico
Abraços.
Dil*
O grande Mario Prata com seus escritos revividos pelas mãos de Berenice.
ResponderExcluirBerenice, o texto chega a ser engraçado. Acontece que existe alguem, claro, que escreve as tais bulas. Espero que muitos não fiquem com as orelhas vermelhas, eu sou uma "bulóloga", leio a íntegra das mesmas antes de tomar remedios (é decorrente de uma receita errada passada por um mau e mal profissional... rsss) e muitas vezes fico danada com as descrições. Algumas precisam ser mais objetivas para que não fiquem duvidas.
ResponderExcluirBeijos
Nossa amei .. também leio todas as bulas,rss
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