Onde está o verbete “bom-senso”?
O dicionário Houaiss, o maior do país, está na mira da patrulha politicamente correta, que acredita lutar contra o preconceito apagando palavras e definições
Dicionário, diz o Aurélio, é o “conjunto de vocábulos duma língua ou de termos próprios duma ciência ou arte, dispostos, em geral, alfabeticamente, e com o respectivo significado”. Dicionário é o celeiro do idioma, o banco central da linguagem formado por palavras compiladas segundo um único critério, o de estarem em uso ou terem sido usadas no passado.
Censurar ou podar palavras dos dicionários é uma estupidez que se equipara à loucura de rasgar dinheiro por ser contra o capitalismo ou ao desatino de queimar florestas nativas para matar serpentes venenosas.
Pois foi exatamente isso que o procurador da República Cleber Eustáquio Neves, do Ministério Público Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, tentou ao ajuizar uma ação civil pública pedindo a remoção das livrarias do dicionário Houaiss, o mais completo do país, com 228 500 verbetes, publicado pela editora Objetiva.
Procurador acolheu um pedido bizarro
Neves deu guarida a um pedido bizarro feito em 2009 por uma pessoa que sustentava que duas definições da palavra “cigano”, mesmo que devidamente registradas no dicionário como sendo de uso pejorativo, são ofensivas à etnia e devem ser banidas.
Enquanto isso não fosse feito e novas edições devidamente “higienizadas” do dicionário não fossem produzidas, o Houaiss deveria ser retirado das livrarias, e sua venda, proibida. O Houaiss registra que, pejorativamente, cigano é “aquele que trapaceia; velhaco, burlador” e “aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina”.
Pode incorrer em preconceito quem utiliza a palavra cigano nas acepções acima, mas incorre em um desvio muito pior quem propõe censurar esses registros por seu potencial ofensivo.
Empobrecer o idioma é um dos instintos automáticos das mentes totalitárias.
No livro 1984, de George Orwell, um Ministério da Verdade se dedica justamente à supressão das palavras consideradas inadequadas pelos ditadores e à sua substituição por termos novos criados justamente para suprimir a verdade.
O "Dicionário Houaiss", alvo de censura absurda
“Assassinando a cultura brasileira”
“Quem pede a suspensão de uma obra por ela conter um termo considerado discriminatório está assassinando a cultura brasileira, que a cada dia é torpedeada por novas empreitadas da patrulha do politicamente correto”, diz o imortal Evanildo Bechara, membro da comissão de lexicógrafos — como são chamados os fazedores de dicionários — da Academia Brasileira de Letras.
Dicionários de outras editoras, como a Melhoramentos e a Globo, há dez anos suprimiram a informação de que a palavra “cigano” foi usada no passado com sentido pejorativo. Diz Breno Lerner, superintendente da Melhoramentos, responsável pelo dicionário Michaelis, que é contra a intervenção do procurador: “À medida que a sociedade se torna mais politicamente correta, cabe ao dicionário retratar isso com o maior rigor possível. É como a fotografia de uma paisagem — se a paisagem muda, é nosso dever fazer um novo retrato, com a maior exatidão”.
Nos tempos da KGB, polícia política da ditadura soviética, quando um político ou uma celebridade caía em desgraça com a liderança do Partido Comunista, sua figura era simplesmente apagada das fotografias antigas, uma flagrante falsificação da história.
A hierarquia católica, em momentos de puritanismo exacerbado, mandou cobrir as partes pudendas dos anjos e de outras figuras mostradas em majestosa nudez por mestres da pintura. Entre os censurados pelos prelados em guerra com os pelados esteve o grande Michelangelo. É saudável, portanto, reprimir a tentação de servir ao gosto presente simplesmente suprimindo e escondendo imagens, palavras ou dados que foram aceitáveis no passado a ponto de serem registrados para o desfrute das gerações vindouras.
A resistente tentação de reescrever o passado
O diretor-geral da Objetiva, que edita o Houaiss, Roberto Feith, não concorda com a tese de que a maneira de se atualizar passe pela higienização do conteúdo dos dicionários e de outras obras literárias ou culturais.
Os dicionaristas do Houaiss pretendem refletir as mudanças na paisagem mencionadas por Breno Lerner, não suprimindo dados do passado, mas acrescentando informações relevantes para o presente. No caso de “cigano”, as próximas edições vão informar que as definições ofensivas “resultam de antiga tradição europeia, pejorativa e xenófoba”.
A tentação de reescrever o passado é resistente. Há mais de dez anos, outra ação contra o Houaiss tentou apagar a definição pejorativa de judeu como “pessoa usurária, avarenta”. Sem sucesso. Em 2010, o Conselho Nacional de Educação condenou a obra de Monteiro Lobato, o maior autor infantil brasileiro, por ela dar vazão ao racismo.
Concebido para facilitar a comunicação entre pessoas que falavam línguas diferentes, o primeiro dicionário de que se tem notícia é o Elya, do século III a.C., com 2 094 palavras.
No Brasil, o pioneiro foi o do carioca Antonio de Moraes Silva, em 1789, oDiccionario da Lingua Portugueza, baseado em uma obra publicada em Portugal pelo padre inglês Rafael Bluteau.
Os dicionários costumam ser revistos por equipes de lexicógrafos a cada cinco ou dez anos, quando se montam novas edições que incluem palavras incorporadas ao idioma (exemplos no novo Houaiss: “blogosfera”, “tubaína”, “blogar”, “pitaco”, “empoderamento”).
Resume o acadêmico Bechara: “O dicionário tem a função de ser o espelho vivo da língua, o repertório da memória cultural e histórica do idioma”.
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