É hora de repetir o ditado conhecido: os brancos – e quem a eles se juntou – que se entendam.
São próximas de zero – para não dizer inexistentes – as chances do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetar, no todo ou em parte, o Estatuto da Igualdade Racial aprovado em acordo partidário por unanimidade, como querem as lideranças que se mobilizam por todo o país, com um grau de indignação e unidade raros.
E por uma razão muito simples, que escapa a muitas dessas lideranças que articulam o veto, mas não a outras, como os deputados da base governista que participam do movimento: a inspiração para o acordo com o senador Demóstenes Torres, do DEM, e a costura para o entendimento partiu do próprio Palácio do Planalto, e apenas teve como coadjuvantes o senador Paulo Paim, o deputado Edson Santos e o atual ministro chefe da SEPPIR, Elói Ferreira de Araújo, deixado no cargo por Santos, precisamente para cumprir a tarefa de posar para a foto e esquentar a cadeira até o próximo mandato.
Não por acaso, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, foi encarregado de fazer a ponte entre o Palácio e o Senado, e daí, para a SEPPIR, mera coadjuvante secundária do jogo, como convém a uma Secretaria Especial da Presidência da República, fato que alguns desconhecem e outra parte apenas finge ignorar por conveniência e oportunismo.
Passados oito anos de governo, em que – verdade seja dita –, registraram-se inúmeros avanços, como a criação da própria SEPPIR, em 2003, Lula precisava deixar registrada em lei para a posteridade, a marca de um Estatuto da Igualdade Racial – pouco importando, para ele, seja esvaziado das propostas e, em alguns aspectos, até mesmo um retrocesso, como no caso da saúde da população negra, lembrado pela médica e ativista carioca Jurema Batista.
Os mentores do acordo chegaram ao cúmulo de fingir não ver que já existe, institucionalizada no âmbito do Ministério da Saúde, uma Política de Saúde para a População Negra, ao concordarem em rasgar todo o capítulo sobre o tema, por exigência de Demóstenes, mas com a aquiescência de quem operou sob a lógica de “ceder os anéis para não perder os dedos”.
E, na verdade, considerando que nem os dedos, nem os anéis eram deles, toda e qualquer negociação era válida. Quando se negocia o que não se tem, não se pode perder, em nenhuma hipótese, e esta parece ter sido a lógica da SEPPIR, sob o comando do Planalto.
Para Lula – que em nenhum lugar do mundo, a não ser no Brasil, passa por branco – deixar a marca de um Estatuto da Igualdade Racial aprovado por consenso no Senado Federal – depois de também apostar em um acordo inédito na Câmara, envolvendo até mesmo o Democratas (DEM) – partido dos herdeiros da Casa Grande –, convenhamos, é uma vitória.
Mais do que isso: é uma vitória estrondosa, especialmente, para quem como ele nunca assumiu a sua condição racial de pardo, em um país em que as políticas de branqueamento e o mito freiriano da democracia racial, operam esse tipo de milagre. Para Lula, a marca é o que importa. A marca para o marketing.
A propósito: alguém já se perguntou como Lula se definiria se fosse consultado por um pesquisador do IBGE, quanto ao quesito raça/cor? A resposta seria, no mínimo, interessante e explicaria muito mais do que a pergunta, porém, a ausência da pergunta é também um dado revelador de como – por conveniência, inocência e ou oportunismo político – a questão racial no Brasil se presta a sutilezas nunca dantes imaginadas.
Além de ter inspirado o movimento que resultou no acordo em prazo recorde, em plena Copa do Mundo da África, o Palácio do Planalto não pode desagradar a dois dos principais beneficiários do acerto no Estatuto aprovado: o senador Paim, autor do projeto original, e o deputado Edson Santos, ex-ministro da SEPPIR, fiel integrante do grupo político no PT que tem, como comandante em chefe, o ex-ministro cassado José Dirceu, mais influente no Partido do que revela o noticiário político e vivendo uma espécie de clandestinidade cinco estrelas.
Ambos estão em campanha – o primeiro quer voltar ao Senado pelo Rio Grande do Sul, e o segundo, manter o mandato na Câmara Federal e, quem sabe até, retornar a SEPPIR no caso da vitória da candidata do Planalto, a ex-ministra Dilma Rousseff, já na dianteira nas pesquisas.
Paim, segundo consta, foi contrário aos termos do acordo e teria cedido ou foi convencido por meia dúzia de gatos pingados – lideranças negras, como Nuno Coelho, das APNs, Ana José Lopes, do Fórum de Mulheres – convocadas à Brasília com passagens pagas, e escolhidas a dedo para fazerem parte da foto como representantes do Movimento Negro, claro, todos favoráveis ao acordo com o DEM e a aprovação do Estatuto.
Alguém, com um mínimo de informação e consciência, pode acreditar nessa história? Dar crédito a essa versão, seria, no mínimo, injusto com Paim – um senador muito bem avaliado, inclusive por outros setores da sociedade civil, como idosos e aposentados – e que tem em mira tornar-se governador do Rio Grande do Sul. Pode-se ter todas as divergências com o senador gaúcho, mas chamá-lo de ingênuo, só por ignorância ou má fé.
Paim não é ingênuo, sabe exatamente o que ganha aceitando a desfiguração completa do projeto que apresentou no Senado em 2003, como “uma segunda Lei Áurea”, aquela que faria o que não foi feito na primeira: introduzir no ordenamento jurídico brasileiro os direitos à cidadania (educação, trabalho, saúde, moradia, condições de vida dignas) para os milhões de brasileiros descendentes de africanos escravizados.
Quanto ao movimento social que, primeiro se mobilizou para pedir a retirada, e agora quer que Lula vete o projeto gestado e parido no Palácio, também aqui não se pode dizer que haja ingenuidade. Na frente ampla que se formou, há setores da base de todos os partidos, há os sem partido, e há o Movimento Negro Unificado (MNU), que há pelo menos três anos – desde o substitutivo Rodolpho Tourinho – abandonou o Estatuto, acenando com “um projeto do povo negro para o Brasil”, do qual se conhece o enunciado–palavra de ordem, mas se ignora o conteúdo.
Em um clima de ânimos exaltados, seria conveniente, porém, uma reflexão para que depois não se cobre coerência de uns e de outros: quem pede veto, diz não serve, e se não serve agora não poderá servir depois quando for sancionado.
Se os sinais que se manda para o Planalto – em nome do Movimento Negro como um todo, e até em função do silêncio de organizações que fazem parte da base do governo no Movimento Negro – são de rejeição no todo, perde-se a legitimidade para o papel de ator em qualquer ação no pós-vigência do Estatuto sancionado.
É por isso mesmo que, em tudo e por tudo parece ter restado a nós negros – que não fomos ouvidos nem “cheirados” em acordos costurados em nosso nome no “universo da macro-política brasileira” – repetir o ditado conhecido: os brancos – e quem a eles se juntou – que se entendam.
Da nossa parte, depois de 122 anos de uma Abolição não concluída, não era isto que esperávamos, e é muito menos do que queremos.
(Dojival Vieira - Fonte: ViaPolítica/Afropress - www.afropress.com/editorial.asp)
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