Quando nada mais funciona, não há de se reverem paradigmas de caridade e conforto?
Poderia estar aqui comemorando o empate do meu time em Montevidéu e a possibilidade de ver o glorioso alvinegro praiano levar a taça Libertadores na próxima quarta-feira, em jogo no Pacaembu.
Motivos não me faltam para tanto. Na última vez em que o Santos faturou o torneio sul-americano, eu ainda não sabia ler ou escrever barbaridades. Para você ver, meu caro leitor, quanto tempo isto não faz. Até cintura eu tinha na época, 48 anos são uma eternidade. E a mera aproximação deste resvalar de dedos santistas na taça mereceria uma justa homenagem, não é mesmo, Zé Love?
Infelizmente, hoje me cabe um papel tacanho -ora, que novidade. O leitor que aqui me visita às sextas já está acostumado. Sou o Contardo Calligaris dos pobres, a Rosely Sayão das mulheres de trompas ligadas, o Marcelo Coelho com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar.
E, hoje, não vejo nenhum mal em ser o João Pereira Coutinho de bigodes e caneta esferográfica atrás da orelha. Muito prazer, pode me chamar de Maria.
São atulhadas de relinchos asininos essas minhas piadinhas estereotipadas, não são? Pois eu também não gostei da saída fácil que Coutinho encontrou para um tema sempre controverso, a eutanásia.
O colunista foi tinhoso ao usar Oscar Wilde para chamar a plateia para o seu lado na hora de falar sobre Jack Kevorkian, o médico que ajudava doentes a realizar suicídios assistidos. Citou um Wilde em fim de vida, recém-saído de Reading Gaol (em inglês arcaico, "gaol" é "jail", prisão) cansado de sofrer e dizendo que, quando nenhum medicamento faz mais efeito, o negócio é "champanhe e ópio".
Ocorre que a Wilde não coube julgar ninguém nem dizer que um médico não pode desafiar a lei. Na verdade, o que eu discuto é o legado que nos deixa o dr. Kevorkian. Na minha modestíssima opinião, ele prestou um serviço de grande valia.
Só quem ainda não teve tempo de ver a morte de perto não sabe que na hora em que a vida está por um fio ninguém quer estar entorpecido. Quando a mulher da foice vem rondando, aí é que as pessoas se apegam ao que é mais comezinho.
Nos anos 80, dezenas de amigos meus partiram vitimados pela Aids. Um dos que eu mais adorava dizia que, caso fosse premiado com o HIV, zarparia na mesma hora para uma viagem de volta ao mundo e começaria a tomar heroína. Quando sua vez chegou, ele passou a comemorar as manhãs em que conseguia executar as tarefas mais simples como sair para dar uma volta no quarteirão ou ir ao escritório.
Nos últimos tempos, pessoas importantes da minha vida se foram. Algumas se intoxicavam com regularidade. Uma delas até tentou, mas ninguém conseguiu levar a boêmia até o leito de morte. Meu próprio pai, que de boêmio não tinha nada, agonizou no hospital por dois anos até sucumbir ao Alzheimer.
Em vez de fornecer um "método Kevorkian" qualquer junto com a alimentação que lhe era ministrada por um tubo ligado ao estômago, a medicina moderna optou por mantê-lo vivo em um calvário sem esperança ou piedade.
Quando nada mais funciona, não há de se reverem paradigmas de caridade e conforto? Ao menos o dr. Kevorkian foi lá e peitou uma indústria que a gente está fragilizado demais para questionar na hora de fazer uso dela.
( Barbara Gancia - barbara@uol.com.br)
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