segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Como médico e cidadão, voto em Serra

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Na saúde, José Serra opôs resistência quase solitária aos interesses indevidos que, com uma frequência além do razoável, rondam o setor
 


No meu cotidiano como médico, costumo usufruir de momentos inebriantes, a emoção sem paralelo de resgatar seres combalidos para a vida. Esses sentimentos atenuam-se ou desaparecem quando, como cidadão, vislumbro uma realidade desconcertante.

Leio sobre a grandiosidade da pátria, apontada pelo Banco Mundial como a oitava economia planetária. As telinhas do Ipea indicam que, entre 2005 e 2009, os programas sociais do governo federal retiraram da pobreza quase 16 milhões de brasileiros, concedendo decência à vida desses cidadãos.
Números que me obrigam a exaltar a sensibilidade e os méritos de Lula (e, segundo muitos, de FHC), que, afrontando dogmas tidos como intocáveis, amenizou o quadro de injustiça que prevalecia na nossa sociedade.


Apesar disso, por que meu desconsolo? Certamente por ser médico e compreender que a saúde de uma nação não poder ser medida apenas pelo seu PIB ou por intervenções pontuais.


Como permanecer calado quando retrocedemos e passamos a ocupar o 75º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)?
Como ficar indiferente quando descubro que 39 milhões de brasileiros ainda vivem em situação de pobreza, sem a certeza de dispor de um prato de comida no próximo alvorecer; que 25% dos membros da nação são analfabetos ou não compreendem o que leem; ou, ainda, que o governo federal destina 270 dólares por ano para a saúde de cada brasileiro, enquanto nos Estados Unidos e na França esses valores são, respectivamente, de cerca de US$ 6.400 e de US$ 4.000.


Mesmo ciente das minhas limitações, desconfio que o Brasil vive uma coreografia insana. Apesar da luta estoica de alguns, o anseio de uma pátria acolhedora e honrada para seus filhos não se concretiza.


Com tudo isso, frustram-se os médicos, que, imobilizados, não conseguem cumprir sua missão.


Como combater essa situação iníqua? Exigindo que as leis e a Justiça representem, de fato, instrumentos de defesa do direito, e não objetos de proteção dos ímprobos e poderosos. E, mais importante, fazendo brotar na sociedade os sentimentos da cidadania e indignação.


Difícil conseguir isso? Não, se reconhecermos entre nossos dirigentes aqueles dotados de sabedoria e integridade, capazes de transformar a sociedade, tornando-a mais justa para seus filhos. Com esses sentimentos, coloco-me ao lado de José Serra.


Pode-se concordar ou não com sua forma de se relacionar, muitas vezes difícil, mas não há como ignorar algumas marcas incomparáveis da sua atuação política. Nos cargos públicos que ocupou, suas ações beneficiaram não apenas os mais desprotegidos, mas todos os estratos da nação.


Na saúde, Serra opôs resistência quase solitária aos interesses indevidos que, com uma frequência além do razoável, rondam o setor.


Na vida política e pessoal, coerente e pacífica, uma história marcada pela defesa intransigente da democracia e dos direitos humanos, quase sempre esquecidos por aqueles que percorrem os caminhos inebriantes do poder.


Em uma sociedade tão injusta como a nossa, tão carente de modelos comprometidos com a decência, não temos o direito de ignorar líderes com a dimensão de Serra.


Vislumbro nele um daqueles homens públicos, quase indisponíveis, capazes de fazer aflorar na sociedade a noção de cidadania e de inconformismo com a iniquidade.


E, principalmente, de promover no Brasil as transformações estruturais tão almejadas por um povo que ainda sonha em controlar seu próprio destino, sem que lhe seja concedido tal direito.




MIGUEL SROUGI, 63, médico, pós-graduado em urologia pela Harvard Medical School (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Conselho do Instituto Criança é Vida.
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