quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O outro lado da rua é um lugar distante.

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Um dia de primavera. Flores no seu esplendor, abelhas carregadas com cestos de pólen, o chilrear dos pássaros fazia coro ao fundo do palco e eu atravessava uma passadeira com uma criança pela mão. 


Um carro parou para nos dar passagem, agradeci e quando chegámos ao outro lado da rua...

" Ó Zé, para que serve o medo ?"

Esta tua filha! Não me apanhas noutra, amigos ou não, nunca mais te digo que ela pode ficar comigo por duas horas. Era no teu turno que isto devia acontecer.

" Desculpa?... não percebi bem..."

" O que é que eu faço com o medo? "

Está confirmado. Tirem-me daqui. Falta-me o ar. Vamos ali medir a tensão arterial.


" Sabes ... bem... não é simples... é uma pergunta interessante... olha... vamos sentar-nos naquele banco..."

Dez segundos. Talvez fosse salvo pela mãe, o avô, a tia, o primo, a mulher a dias... até o gato serviria.

" Neste banco?"

" Não, não, este está ao sol, aquele além fica à sombra, é mais confortável."

Outros dez segundos.

Ali estava ela, sentada ao meu lado, olha-me com o ar mais natural do mundo e espera. Afinal, tinha feito uma simples pergunta e a resposta só poderia ser, também ela, simples.

" Tiveste medo quando atravessámos a rua?"

"Não foi bem isso... ia contigo. Mas comecei a pensar que, se fosse sozinha, não conseguia atravessar a passadeira."

" Não tenho a certeza se vais entender isto, mas o medo é muito importante. Por exemplo, ali na rua, observámos o movimento dos carros e só depois de pararem é que atravessámos com toda a segurança. Fizemos isso tudo porque tínhamos medo que nos acontecesse um acidente. Ficaríamos magoados sem necessidade nenhuma. Seria um grande disparate, Não achas?"

" Claro."

" Faz sentido para ti que o medo seja uma coisa útil que nos faz ter cuidado e impede-nos de fazer muitos disparates?"


" Sim."


Demasiado bom para ser verdade.


" Estás satisfeita com a resposta ou ainda tens dúvidas?"


" Sim, estou satisfeita."


Safei-me. Já podia parar de suar. O resto caber-te-á a ti, meu caro, assim que voltares do teu compromisso e a vieres buscar. E o resto não será pouco. Ela já está a tratar disso.





(José de Souza - Fonte:http://istodeseserhumano.blogspot.com/2011/09/o-outro-lado-da-rua-e-o-outro-lado-do.html)
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Um comentário:

  1. O medo em certa dosagem é o nosso instinto em alerta para preservarmos a vida.

    Mas compreendo sim o medo da miúda, eu nessa altura da minha vida, ainda não consegui safar-me de um todo desse medo feroz e voraz.

    Ando a caminhar cada dia um pouco mais para a melhoria, mas acredito Berenice que o medo sempre vai estar arraigado em mim.

    Ele é irracionalmente analisado por mim com toda as forças das minhas lógicas, e mesmo assim é imperactivo e passo o tempo, atropelando-o com minha paixão pela vida.

    Atravessar a rua para a maioria das pessoas, é algo simples e normal, mas para muitos, é um verdadeiro teste de coragem e teste aleatório da neurologia.

    Digo-te por que:

    Como portadora da bipolaridade, minha percepção é desequilibrada, isso é facto, mas minha coordenação motora também segue o mesmo caminho, e isso quando estou em dias de completo assédio de crise.

    Se penso que sigo numa recta, penso errado! pois lá estou eu perigosamente ora a pender para a esquerda, ora a direita e a dar tropeções pelas calçadas, pois a noção de profundidade e distância no espaço, não chega a tempo em meu cérebro para livrar-me desses vexames.

    Por isso raramente ando sozinha e o que piorou ainda, foi que aconteceu-me já a alguns anos atrás ter sido atropelada justamente ao atravessar a rua.

    Como legado, obtive quatro costelas quebradas, dedos dos pés, clavícula e isso sem falar nos ferimentos e foi uma longa convalescença, depois disso fui tomada pela síndrome do pânico, fiquei mais de um ano sem sair de casa, só saia inconsciente levada por familiares.

    E como certos ossos não calcificam, fico eu a sempre estar as voltas com ossos fora do lugar e o juizo também (risos)

    Por isso digo-te é compreensível o medo da miúda e o medo de quem a levava pela mão é aceitável.

    Esse medo, só não é aceitável se for permitido, estacionar-se nele e deixar que a vida por ele seja controlada.

    Muitos amigos chama-me de teimosa ao extremo e reconheço que sou, e acredito que se não fosse o facto de ser tão teimosa nem aqui estaria e queres saber d'uma coisa?

    A graça da vida é essa, teimarmos apaixonadamente a nela estar e nela viver o maximo e mais plenamente que pudermos.

    Encantei-me com tua publicação,principalmente com a escolha do Autor, sou admiradora de carteirinha dos escritos do nosso Amigo José Souza, a escrita dele é singular e tem o raro encanto de cativar e marcar a memória da nossa alma.

    Meu carinhoso abraço, minha querida Berenice,é um prazer imenso está aqui, nesse teu mundo leve, suave, cujas energias faz-nos renovados.

    Até breve e grata por tua singela partilha

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