A tentativa de encontrar um bode expiatório para tudo é uma prática que acompanha a humanidade há milhares de anos e os estudiosos dizem que podemos nos livrar dela
“ Nada paralisou mais a inteligência do que a busca por bodes expiatórios”, escreveu o historiador britânico Theodore Zeldin no livro Uma História Íntima da Humanidade, de 1994. Paralisou, e continua a paralisar. A tentativa de jogar a culpa por uma situação indesejada — de desastres naturais a guerras, de crises econômicas a epidemias — nas costas de um único indivíduo ou grupo quase sempre inocente é uma prática tão disseminada que alguns estudiosos a consideram essencial para entender a vida em sociedade.
Se observarmos à nossa volta, encontraremos muitos exemplos. Quando um adulto interrompe a briga de duas crianças, uma aponta o dedo inquisidor para a outra: “Foi ela quem começou!”.
De maneira semelhante, a campanha para as eleições presidenciais na França, encerradas na semana passada com a vitória do socialista François Hollande, foi pautada em parte pelas retóricas anti-imigração e anti-União Europeia, como se um fator qualquer vindo de fora fosse o bastante para explicar um problema tão complexo como o alto desemprego no país.
Nos Estados Unidos, o culpado da vez é o 1 % mais rico da população, que paga proporcionalmente menos impostos do que a classe média. Na América Latina, a tradição populista não existiria sem a invenção de inimigos imaginários internos (as oligarquias, os bancos, a imprensa) e externos (o FMI, os Estados Unidos).
A ditadura cubana sustenta-se há mais de quatro décadas sobre a fantasia de que a miséria de sua população se deve ao embargo americano à ilha, e não ao fracasso de seu sistema comunista. E o venezuelano Hugo Chávez chegou a levantar a bizarra hipótese, no ano passado, de que os Estados Unidos haviam provocado câncer nele e em outros quatro presidentes da região diagnosticados com a doença em anos recentes, entre os quais Dilma Rousseff e Lula.
Como é possível que explicações irracionais como essas convençam tanta gente, apesar da falta de evidências?
No livro Scapegoat — A History of Blaming Other People (Bode Expiatório — Uma História da Prática de Culpar Outras Pessoas), publicado recentemente nos Estados Unidos e na Inglaterra, o autor, Charlie Campbell, defende a tese de que cada ser humano tende a se considerar melhor do que realmente é, e por isso tem dificuldade de admitir os próprios erros. “Adão culpou Eva, Eva culpou a serpente, e assim continuamos assiduamente desde então”, escreveu Campbell.
No livro Scapegoat — A History of Blaming Other People (Bode Expiatório — Uma História da Prática de Culpar Outras Pessoas), publicado recentemente nos Estados Unidos e na Inglaterra, o autor, Charlie Campbell, defende a tese de que cada ser humano tende a se considerar melhor do que realmente é, e por isso tem dificuldade de admitir os próprios erros. “Adão culpou Eva, Eva culpou a serpente, e assim continuamos assiduamente desde então”, escreveu Campbell.
Junte-se a isso a necessidade intrinsecamente humana de tentar encontrar um sentido, uma ordem no caos do mundo, e têm-se os elementos exatos para aceitarmos a primeira e a mais simples explicação que aparecer para os males a nos afligir.
Desde muito cedo, provavelmente com o surgimento das primeiras crenças religiosas, a humanidade desenvolveu rituais para transferir a culpa para pessoas, animais ou objetos como uma forma de purificação e recomeço.
A expressão “bode expiatório” refere-se a uma passagem do Velho Testamento que descreve o sacrifício de dois ruminantes no Dia da Expiação hebraico. O primeiro bode era sacrificado imediatamente em tributo a Deus, para pagar pelos pecados da comunidade. O segundo era enxotado da aldeia, carregando consigo, simbolicamente, a culpa de todos os moradores.
Os gregos antigos tinham o pharmakos, geralmente um escravo ou um marginal, que era banido para purificar o grupo e assim afastar o que consideravam punições dos deuses — pragas, secas e outros desastres. Alguns pensadores gregos questionaram a tendência de atribuir tudo aos habitantes do Olimpo. O dramaturgo Eurípides (480-406 a.C.) chegou a ponderar que em suas últimas obras as pessoas precisam se confrontar com o mal que emana delas próprias, no lugar de sempre responsabilizar os imortais.
A escolha do bode expiatório costuma obedecer a, pelo menos, um de três requisitos.
Primeiro, deve ser alguém capaz de substituir sozinho muitas vítimas potenciais. Foi o que ocorreu com Andrés Escobar, zagueiro da seleção colombiana de futebol cujo gol contra na partida com os Estados Unidos eliminou seu time da Copa do Mundo de 1994. Quando voltou à Colômbia, Escobar foi assassinado a tiros, supostamente por apostadores que haviam perdido dinheiro com a derrota. Por maior que tenha sido o erro do jogador, é óbvio que num time com onze integrantes não se pode atribuir a apenas um deles toda a culpa por um resultado ruim.
O segundo quesito a ser preenchido por um candidato a bode expiatório é ser um alvo facilmente identificável. O ditador alemão Adolf Hitler, um dos mais cruéis inventores de bodes expiatórios de todos os tempos, achava que um verdadeiro líder nacional era aquele que, em vez de dividir a atenção de seu povo, tratava de canalizá-la contra um grande inimigo. Após séculos de antissemitismo na Europa, não foi difícil para os nazistas transformar os judeus — que na Idade Média chegaram a ser culpados até pelo alastramento da peste negra — em suas vítimas preferenciais, atribuindo a eles a responsabilidade por uma série de malfeitorias, entre as quais a de serem os causadores e beneficiários da crise econômica que assolava a Alemanha. A expiação coletiva imposta pelos nazistas resultou na morte de 6 milhões de judeus.
O terceiro critério para encontrar um bom culpado é suspeitar de qualquer pessoa que tente defender a inocência de um bode expiatório. Na caça às bruxas da Idade Média, que resultou no julgamento e na execução de dezenas de milhares de mulheres, funcionava assim.
O terceiro critério para encontrar um bom culpado é suspeitar de qualquer pessoa que tente defender a inocência de um bode expiatório. Na caça às bruxas da Idade Média, que resultou no julgamento e na execução de dezenas de milhares de mulheres, funcionava assim.
Os métodos para identificar uma "noiva do demônio” eram absurdos. Um deles consistia em jogar a acusada num rio com as mãos e os pés atados; se ela boiasse, era culpada, se afundasse, era inocente, mas aí já estaria morta. Nessas condições, poucos testemunhavam em favor das supostas bruxas, com medo de serem enviados juntos para a fogueira.
Essa regra também é atávica dos estados totalitários, que, por princípio, não podem assumir as próprias falhas sob o risco de perderem a legitimidade, e por isso precisam de alguém para expiar suas culpas.
Do soviético Josef Stalin a Hugo Chávez, tiranos e tiranetes usaram e usam a máxima de que quem nega uma conspiração é pane dela.
A injustiça sofrida no fim do século XIX pelo oficial do Exército francês Alfred Dreyfus preenche os três requisitos acima. Dreyfus, oriundo de uma rica família judia, foi condenado por espionagem, submetido a um humilhante rito de desonra militar e enviado para uma solitária em uma colônia penal no Caribe. Anos depois, por iniciativa de colegas e de intelectuais como Émile Zola, provou-se que Dreyfus era inocente, mas nem por isso ele foi libertado. Seus apoiadores foram perseguidos, e Zola refugiou-se na Inglaterra. Dreyfus acabou anistiado, mas sua inocência nunca foi admitida oficialmente. "Ao longo da história, apenas em circunstâncias excepcionais os governantes foram capazes de admitir sua culpabilidade”, escreve Campbell no livro Scapegoat.
Nesse sentido, um exemplo de retidão moral foi demonstrado pelo general americano Dwight Eisenhower, que dias antes da invasão da Normandia, momento decisivo da II Guerra Mundial, em 1944, deixou preparado um discurso em que assumia toda a responsabilidade se a operação fracassasse. Ele não precisou usá-lo e, em 1952, foi eleito presidente dos Estados Unidos.
O estudo mais profundo sobre a função do bode expiatório na sociedade é do francês Rene" Girard, cujo livro mais conhecido é A Violência e o Sagrado.
Girard é autor da teoria do desejo mimético, segundo a qual ninguém almeja algo porque precisa, mas porque aquilo também é desejado por outra pessoa. A vida em sociedade consiste na multiplicação dessa equação, e a dificuldade de conciliar os desejos de todos cria tensões e violência. Para que a ordem social não imploda em atos de vingança, existem os rituais de sacrifício, em que os impulsos destrutivos são canalizados para um bode expiatório.
No mundo moderno, os sacrifícios com derramamento de sangue deram lugar a rituais mais sutis de expiação, auxiliados por tecnologias como a internet. "O fenômeno mimético pode se propagar com muito mais rapidez e intensidade em multidões abstratas do que em multidões concentradas em um mesmo espaço físico. Eis uma maneira muito eficiente e rápida de destruir a reputação de uma pessoa”, diz o francês Jean- Pierre Dupuy, professor da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e diretor de pesquisas do instituto Imitatio, fundado por Peter Thiel. um dos dez maiores acionistas do Facebook.
Thiel, vejam só, foi aluno de Girard. Mas a internet é só um instrumento para os novos rituais de sacrifício, e a humanidade não está presa a esse mecanismo arcaico.
Segundo René Girard, no momento em que o ser humano se conscientiza de que o bode expiatório nada mais é que uma vítima inocente, seu sacrifício deixa de fazer sentido. Não precisamos de bodes expiatórios.
.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário é muito bem vindo.