A comercialização sem precedentes da vida social, que visava salvar o capitalismo da estagnação, afetou profundamente as relações que haviam sido estabelecidas nas economias mistas do pós-guerra entre o fornecimento de bens pelo Estado e o fornecimento de bens pelo mercado. E, ainda mais importante: mudou a relação entre os cidadãos e os Estados no que resta da esfera pública – e, portanto, a natureza da própria política.
O fato de que os Estados passaram a coexistir com os novos mercados dinâmicos de bens de consumo avançados ajudou a aumentar a pressão dos investidores pela privatização de vários serviços que até então eram públicos, incluindo telecomunicações, radiodifusão e televisão. Estes passaram a ser cada vez mais vistos, em seus formatos tradicionais, como antiquados, maçantes e insensíveis às demandas dos usuários, agora tornados consumidores. Quando o progresso tecnológico possibilitou que essas áreas antes controladas pelos Estados sofressem a mesma multiplicação e diversificação de produtos verificada na indústria manufatureira, os governos de todo o mundo aceitaram e ajudaram a legitimar o argumento de que só as empresas privadas poderiam satisfazer as expectativas crescentes dos consumidores, que agora exigiam produtos mais personalizados.
Foi nos setores privatizados da televisão e das telecomunicações que a comercialização mais avançou. Não por acaso, foi nessas áreas que algumas das maiores fortunas do final do século XX foram feitas, em especial por empresários do entretenimento como Rupert Murdoch e Silvio Berlusconi. Na Alemanha, não havia mais que dois canais nacionais de televisão até meados da década de 70, ambos públicos, com muitas reportagens de interesse público e uma missão educativa oficial. O resultado eram muitos programas mostrando peças de Goethe, Shakespeare e Brecht, assim como transmissão ao vivo dos debates no Parlamento.
Hoje, em comparação, é possível receber mais de 100 canais de tevê, muitos do exterior. Os dois canais públicos alemães estão confinados a uma pequena audiência de pessoas mais velhas – apesar de terem modificado sua programação para imitar os canais privados, mais voltados ao entretenimento e mais bem-sucedidos. Essa mesma tendência se manifestou em todos os outros países europeus.
As telecomunicações mudaram de maneira semelhante. No caso alemão, o sistema de telefonia nacional era administrado pelos Correios até o final dos anos 80, e seus lucros eram utilizados para subsidiar o serviço postal. O espírito do sistema pode ser ilustrado pelo aviso que as cabines de telefones públicos costumavam ter: Fasse Dich kurz, ou “Seja breve”. Pedia-se aos cidadãos que não abusassem do seu acesso privilegiado às preciosas linhas telefônicas estatais para jogar conversa fora. Em comparação, alguns anos atrás uma das muitas empresas de telefonia privada, com seus inúmeros planos personalizados, lançou anúncios mostrando jovens conversando em seus celulares com o slogan Quatsch Dich leer, ou “Jogue conversa fora à vontade”.
Um terceiro exemplo de como os novos padrões de consumo incentivaram a privatização de serviços públicos é o das piscinas. No pós-guerra, quase todas as comunidades alemãs tinham uma piscina pública. Eram simples, até austeras, mas muito frequentadas, devido à convicção generalizada de que eram boas para a saúde e que as crianças tinham o dever de aprender a nadar, tanto para reforçar seu caráter como para poder salvar outras pessoas do afogamento. Nos anos 70, porém, a frequência diminuiu e as piscinas estatais, ou Stadtbäder, sofreram uma crise financeira. Ao mesmo tempo, piscinas privadas, chamadas Spassbäder, começaram a surgir e prosperar. Ofereciam redemoinhos de água quente, saunas, restaurantes, praias artificiais, até mesmo shoppings. O preço da entrada era muito mais alto do que nas decadentes Stadtbäder, mas nelas havia muito mais diversão.
Com o tempo, cada vez mais comunidades fecharam suas piscinas públicas, ou as venderam a empresas privadas que prometeram reformá-las e oferecê-las como Spassbäder. Onde as piscinas continuaram públicas e as comunidades tinham dinheiro para investir, elas foram reformadas no espírito da competição com as empresas privadas, e muitas se recuperaram. Geralmente, porém, nessa área como em outras, começou a prevalecer a ideia de que apenas o setor privado era capaz de atender adequadamente às necessidades em transformação de uma clientela mais rica e mais exigente, e que a melhor coisa que o Estado poderia fazer nas circunstâncias era não atrapalhar – fechar suas instalações primitivas e convidar as empresas privadas para proporcionar diversão, cores variadas e, sobretudo, liberdade de escolha.
(WOLFGANG STREECK - Fonte: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-79/tribuna-livre-da-luta-de-classes/o-cidadao-como-consumidor)
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