Humor brasileiro reflete a nossa falta de identidade, diz historiador
Autor do livro As Raízes do Riso, sobre a gênese do humor no país, mostra como características culturais estão impregnadas no nosso jeito de fazer rir
Rodrigo Levino
Fada Santoro e Cyll Farney, astros dos filmes da Atlântida, passando pelos fãs a caminho de uma sessão do filme "Luzes da Ribalta", de Charles Chaplin, no Cine Copacabana (Divulgação)
Há um humor tipicamente brasileiro? Baseado em formatos importados e de história relativamente recente, o humor nacional não parece muito descolado de seus modelos estrangeiros. Mas ele tem, sim, as suas particularidades. De acordo com Elias Thomé Saliba, titular de teoria da história da Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro As Raízes do Riso (editora Companhia das Letras, 366 páginas), que investiga a gênese do humor no Brasil, o cômico feito no país é impregnado da nossa cultura. Estão presentes nele duas características marcantes da sociedade brasileira: a confusão entre as esferas pública e privada e a vocação para tratar tudo de maneira emocional – ou cordial, como diria Sérgio Buarque de Hollanda. “O humor brasileiro é reflexo da nossa falta de identidade”, diz Saliba.
Segundo o historiador, foi na Belle Époque brasileira – período compreendido entre as duas décadas finais do século XIX e o fim da 1ª. Guerra Mundial, em 1918 – que surgiu esse humor, no esteio do jornalismo moderno e suas seções fixas de humor e de caricaturas. Mais tarde, no teatro, no rádio e no cinema, o humor frutificou. A partir do abrasileiramento de formatos ingleses e italianos já consagrados, surgiram programas hoje clássicos como o Balança Mas Não Cai, sucesso do rádio nos anos 1930 e 1940 que lançou personagens até hoje usados pela televisão como Ofélia e Fernandinho. E o cinema das chanchadas, da lendária produtora Atlântica, que mesclava musicais com o humor radiofônico. A partir da década de 1950, essas mídias forneceram para a televisão atores, diretores, textos e formatos.
Na segunda etapa do século, viradas se deram com o Pasquim, jornal que cutucou a ditadura militar com humor e picardia, e com a influência do Monthy Python, que na Inglaterra emparedou o conservadorismo político, no final da década de 1970, e aqui deu impulso a programas como a TV Pirata e o Casseta & Planeta, levados ao ar entre o fim dos anos 1980 e o início dos 1990. Até hoje, pouco há de renovação nesses formatos consagrados. Há um quê de humor de rádio em programas como Zorra Total e A Praça É Nossa, por exemplo. “Em algumas épocas, sobretudo as de forte censura, o humor funcionou como válvula de escape, já que possui vocação intrínseca para revelar verdades escondidas sob o véu da mera diversão”, diz Saliba.
O stand up, embora só agora tenha virado febre no país, já está por aqui desde a década de 1960, representado pelo recém-falecido humorista José Vasconcellos. E não só com ele. Outros veteranos do humor experimentaram o gênero. Conhecidos principalmente por seus trabalhos na televisão, como os já clássicos Chico City, Satiricom e Planeta dos Homens, nomes como Jô Soares e Chico Anysio já faziam uso do formato desde os anos 1960. Na antiga TV Tupi, Anysio enfrentava a plateia munido de um microfone – e de verve.
Renascido como novidade em meados dos anos 2000 com auxílio da internet, o gênero revelou uma nova leva de humoristas que, assim como se deu no começo do século passado com o rádio e o cinema, migraram da web para a televisão. Na TV, o humor de clubes e pequenos palcos ganhou amplitude nacional com os participantes do CQC, exibido pela Band, assim como o grupo em torno de Marcelo Adnet, que levou elementos desse formato para a MTV. O movimento deu aos humoristas audiência, mas também limitações e riscos, além de críticas e debates sobre os textos que criam ou improvisam. Piadas com teor de bullying são defendidas pelos autores como o sagrado direito ao politicamente correto, quando o que está em jogo é, na realidade, a qualidade artística do texto.
As discussões de hoje são, segundo o autor de As Raízes do Riso, um fato raro no Brasil, onde os debates em torno do humor se instalaram, mais comumente, em períodos de crise política e institucional. Mais um exemplo do jeitinho brasileiro de lidar com as coisas, por certo. Confira abaixo os melhores momentos da entrevista de Elias Thomé Saliba.
Em que contexto histórico o humor tomou corpo no Brasil? Os anos mais decisivos para o humor no país foram aqueles marcados pela introdução da imprensa moderna no Brasil. Nas duas últimas décadas do século XIX, surgem os primeiros grandes jornais diários e as primeiras revistas semanais ilustradas, com seções fixas de humor e de caricaturas, além de publicidade. Foi essa abertura proporcionada pela imprensa moderna – juntamente com a crise de expectativas gerada pelo advento da República – que possibilitou a criação de uma linguagem humorística nacional, feita a partir da mistura de poemas paródicos, música, anúncios publicitários, dança e marchinhas de carnaval.
Houve um momento, como o que se vê agora, em que o humor pautou um debate de proporção nacional? Em especial, nenhum momento. Em algumas épocas, sobretudo as de forte censura (informal ou institucional), o humor funcionou como válvula de escape, já que possui vocação intrínseca para revelar verdades escondidas sob o véu da mera diversão. É aí que a produção humorística atua como catalisadora das insatisfações e da impotência política da maioria da população. Um momento criativo, no Brasil, é aquele que vem logo após o império: é o que chamo de “humor da desilusão republicana”. Outro período muito criativo do humor nacional foi a época da campanha Civilista (1909-1910), quando se abriu a primeira grande crise na sucessão presidencial (São Paulo e Minas Gerais se viram em lados opostos na disputa, quebrando a política do café-com-leite). Outros momentos em que o humor serviu como instrumento de crítica política direta foram os períodos ditatoriais ou autoritários: a era Vargas (1930-1945) e a dos governos militares (1964-1979).
Qual o principal elemento do humor produzido no Brasil? A eterna confusão entre as esferas pública e privada e a nossa vocação – que temos esperança de superar – para tratar tudo de maneira emocional, reduzindo as distâncias sociais. Chamamos esta vocação para a cordialidade de Síndrome de Santa Terezinha. No Brasil, a santa francesa Thereza de Lisieux se transforma em Terezinha – ou seja, até os santos partilham de nossa vida privada, tornando-se mais próximos de nós. Usamos de diminutivos para quebrar hierarquias e tornar tudo próximo, porque temos horror às distâncias sociais, que são enormes.
E em relação ao papel social do riso, o que se pode dizer? O riso é arma social para os impotentes. No decorrer da história, o riso popular permitiu que se criasse, cada vez mais, uma cultura da divergência, ativa e oculta – o que mostra como o humor se tornou arma contra regimes repressivos. Se não se pode mudar a história real, muda-se o sentido dela. O riso, a piada é, essencialmente, reversão de significado.
O humor brasileiro é, portanto, reflexo da nossa identidade? Da nossa falta de identidade. Somos uma sociedade mal costurada, que sempre praticou a exclusão. Brasileiros só se sentem brasileiros em momentos emocionais, rápidos e circunstanciais. O humor funciona como o carnaval e o futebol para o brasileiro ter este momento efêmero e emocional de identidade. A piada é o paradigma do efêmero. Nas últimas décadas, isso se acentuou, visto que as promessas trazidas pela redemocratização do país estancaram na corrupção crônica – institucionalizada pela impunidade –, numa política social remediadora e na tibieza dos partidos e organizações políticas.
(Fonte: http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/humor-brasileiro-reflete-a-nossa-falta-de-identidade-diz-historiador)
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