quarta-feira, 8 de junho de 2016

Corpos expostos

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Apareceu no Facebook, compartilhado por alguém que teve a prudência de não acrescentar comentários, um videozinho bem representativo da cultura sexual contemporânea.

Deve haver muitos parecidos, mas você pode encontrar o de que estou falando na página "São Gonçalo caiu no Face". O título do filmete é "Eita, eita, eita, a favela tá liberada rs".

Nada de diferente, imagino, daquilo que acontece nos bailes funk –onde, como se sabe, meninas têm o hábito de irem "preparadas" (isto é, sem calcinha) para a noite frenética. Mas a cena a que me refiro acontece à luz do dia, numa rua qualquer de bairro popular.

Umas seis ou sete jovens, nada anoréxicas, dançam de shortinho ou minissaia na frente de alguns rapazes que não esboçam reação. Elas estão quase de quatro, e dizer que rebolam seria um vago eufemismo.

Sacodem-se em estado de verdadeira fúria uterina. Com os pés bem afastados, abrem e fecham os joelhos como se quisessem sugar, pela pelve, o asfalto do chão. Enquanto a minissaia parece rumar para a cintura, uma menina (devem ter uns 15 anos no máximo) esfrega de leve o dedo na parte descoberta.

Fiquei chocado, e –como todo mundo que se choca com essas coisas– apresso-me em dizer que não sou moralista. Não sou moralista, mas...

Aquilo me pareceu uma brutalidade feita com o próprio corpo. Elas mesmas se reduziam, a meu ver, a simples bundas e vaginas. Não havia rosto, não havia passos, não havia variação, não havia metáfora naquela dança: contava apenas a batida do sexo.

Não dá sequer para dizer que havia sensualidade, algo que pressupõe a insinuação e o convite. Elas simplesmente copulavam sem parceiro, e com um mínimo de roupa.

Não ignoro que, cem anos atrás, havia quem considerasse o tango ou o maxixe absolutas indecências. Difícil imaginar qual minha reação se vivesse naquela época. Tudo depende, claro, de inúmeras coisas: a idade que eu teria, o lugar de onde viesse...

Uma diferença, contudo, é objetiva. Nas danças "obscenas" de antigamente, quem participava era o casal: havia consentimento entre homem e mulher, e o que se encenava, por mais sexual que fosse, trazia a forma da oferta e da recusa, da atração e da distância.

Aqui, o que se faz é uma exposição carnal, em que meninas competem pela atenção do macho.

Talvez o leitor esteja pensando aquilo que eu mesmo pensei assistindo ao vídeo: essas jovens não estariam provocando o próprio assédio, a própria violência sexual?

Mas quando surgem raciocínios desse tipo é que vejo o quanto a "cultura do estupro" está arraigada, até em mim mesmo. Obviamente essas meninas estão "provocando". Do mesmo modo que alguém, num carro de luxo, pode estar "provocando" seu próprio assalto ou seu sequestro. A provocação não absolve o crime.

A questão é mais sutil, entretanto. Como mostrou o interessante texto de Claudia Collucci, na Folha desta segunda (6), a legislação sobre o estupro mudou muito ao longo do tempo –e o entendimento do crime também.

A ideia de que a moça violentada "provocou" o homem corresponde, na verdade, a uma visão em que a lei não se preocupava unicamente em proteger a mulher. Se uma virgem é estuprada, o prejudicado com isso será o pai, o noivo, o marido... Quanto à outra, a de "maus costumes", o sistema legislativo e jurídico tem menos a reprimir.

As meninas do funk, de modo chocante para mim, pertencem a outro universo. A beleza e a juventude do corpo são entendidas, imagino, quase como armas –como instrumentos de poder. É disso que elas dispõem para obter a proteção, o amor, a fama, o dinheiro de um traficante ou de alguém respeitável no lugar. Não são "inocentes", nesse sentido: fazem o melhor uso possível de seu "capital" corporal.

O estupro, nesse caso, é não apenas uma violência física e moral: é uma espécie de assalto, de usurpação, de um bem que a jovem tem o direito de dispor como quiser.

Nesta interpretação, não haveria como associar diretamente a ideia de "mulher objeto" com a "cultura do estupro". A mulher contemporânea tem todo o direito de se valer da beleza física, de se mostrar como "objeto" se assim o desejar. Exatamente para se proteger esse direito, esse uso, é que o estupro merece ser punido: estão tirando à força, da mulher, seu poder de seduzir.





Marcelo Coelho - Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelocoelho/2016/06/1779326-corpos-expostos.shtml?cmpid=newseditor

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