sábado, 2 de abril de 2011

Japão, por Monja Coen

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Quando  voltei ao Brasil, depois de residir doze anos no Japão, me incumbi da  difícil missão de transmitir o que mais me impressionou do povo Japonês:  kokoro.
 
Kokoro   ou Shin significa coração-mente-essência.
 
Como  educar pessoas a ter sensibilidade suficiente para sair de si mesmas, de  suas necessidades pessoais e se colocar à serviço e disposição do grupo, das outras pessoas, da natureza ilimitada?
 
Outra  palavra é gaman: aguentar, suportar.


Educação para ser capaz   de suportar dificuldades e superá-las.
 
Assim,  os eventos de 11 de março, no Nordeste japonês, surpreenderam o  mundo  de duas maneiras.
 
A  primeira pela violência do tsunami e dos vários terremotos, bem como dos  perigos de radiação das usinas nucleares de  Fukushima.
 
A  segunda pela disciplina, ordem, dignidade, paciência, honra e respeito  de todas as vítimas. 


Filas de  pessoas passando baldes cheios e vazios, de uma piscina para os  banheiros. Nos  abrigos, a surpresa das repórteres norte americanas: ninguém queria  tirar vantagem sobre ninguém. 

Compartilhavam cobertas, alimentos,  dores, saudades, preocupações, massagens. Cada qual se mantinha em sua  área.  As crianças não faziam algazarra, não corriam e gritavam,  mas se mantinham no espaço que a família havia  reservado.
Não  furaram as  filas para assistência médica – quantas pessoas  necessitando de remédios perdidos- mas  esperaram sua vez também para receber água, usar o telefone, receber  atenção médica,  alimentos, roupas e escalda pés singelos, com  pouquíssima água. Compartilharam  também do resfriado, da falta de água para higiene pessoal e coletiva,  da fome, da tristeza, da dor, das perdas de verduras, leite, da morte.
 
Nos  supermercados lotados e esvaziados de alimentos, não houve saques.   Houve a resignação da tragédia e o agradecimento pelo pouco que recebiam. 


Ensinamento de Buda, hoje enraizado na cultura e chamado  de kansha no kokoro: coração de gratidão.
 
Sumimasen  é outra palavra chave.  Desculpe, sinto muito, com licença. 


Por  vezes me parecia que as pessoas pediam desculpas por viver.   Desculpe causar preocupação, desculpe incomodar, desculpe precisar falar  com você, ou tocar à sua porta.  Desculpe pela minha dor, pelo  minhas lágrimas, pela minha passagem, pela preocupação que estamos  causando ao mundo. Sumimasem.
 
Quando  temos humildade e respeito pensamos nos outros, nos seus sentimentos,  necessidades. Quando cuidamos da vida como um todo, somos cuidadas e respeitadas. O  inverso não é verdadeiro: se pensar primeiro em mim e só cuidar de mim,  perderei.  Cada um de nós, cada uma de nós é o todo  manifesto.
 
Acompanhando  as transmissões na TV e na Internet pude pressentir a atenção e cuidado  com quem estaria assistindo: mostrar a realidade, sem ofender, sem  estarrecer, sem causar pânico.  As vítimas encontradas, vivas ou  mortas eram gentilmente cobertas pelos grupos de  resgate e  delicadamente transportadas – quer para as tendas do exército, que serviam de hospital, quer para as ambulâncias, helicópteros, barcos, que  os levariam a hospitais.
 
Análise  da situação por especialistas, informações incessantes a toda população  pelos oficiais do governo e a noção bem estabelecida de que “somos um só  povo e um só país”.
 
Telefonei  várias vezes aos templos por onde passei e recebi telefonemas.   Diziam-me do exagero das notícias internacionais, da confiança nas  soluções que seriam encontradas e todos me pediram que não cancelasse  nossa viagem em Julho próximo.
 
Aprendemos  com essa tragédia  o que Buda ensinou há dois mil e quinhentos  anos: a vida é transitória,  nada é seguro neste mundo,  tudo  pode ser destruído em um instante e reconstruído novamente.
 
Reafirmando  a Lei da Causalidade podemos perceber como tudo  está interligado e  que nós humanos não somos e jamais seremos capazes de salvar a  Terra.  O planeta tem seu próprio movimento e vida.  Estamos na superfície, na casquinha mais fina.  Os movimentos das placas  tectônicas não tem a ver com sentimentos humanos, com divindades,  vinganças ou castigos.  O que podemos fazer é cuidar da pequena  camada produtiva, da água, do solo e do ar que respiramos.  E isso  já é uma tarefa e tanto.
 
Aprendemos  com o povo japonês que a solidariedade leva à ordem, que a paciência  leva à tranquilidade e que o sofrimento compartilhado leva à  reconstrução.
 
Esse  exemplo de solidariedade, de bravura, dignidade, de humildade, de  respeito aos vivos e aos mortos ficará impresso em todos que  acompanharam os eventos que se seguiram a 11 de  março.
 
Minhas  preces, meus respeitos, minha ternura e minha imensa tristeza em  testemunhar tanto sofrimento e tanta dor de um povo que aprendi a amar e  respeitar. 

Havia  pessoas suas conhecidas na tragédia?, me perguntaram. E só posso dizer :  todas.  Todas eram e são pessoas de meu conhecimento.  Com  elas aprendi a orar, a ter fé, paciência, persistência.  Aprendi a respeitar meus ancestrais e a linhagem de Budas.  

Mãos  em prece (gassho)
 
(Monja  Coen)

Um comentário:

  1. Eu ouvi essa palavra kokoro uma única vez. Foi num programa da Oprah Winfrey, pela boca de uma médica que tinha mais de 80 anos e ainda ativa falava sobre qualidade de vida. Eu fiquei bastante interessada, pensando uma hora em procurar informações na internet e acabei esquecendo, dando uma espiada em seu blog, relembrei. Obrigada!

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