terça-feira, 7 de setembro de 2010

A volta do bode preto da velha esquerda - Arnaldo Jabor

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Meu primeiro grande amor começou num “aparelho” do Partido Comunista Brasileiro em 1963, meses antes do golpe militar. Era um pequeno apartamento conjugado na Rua Djalma Ulrich em Copacabana, em cima de uma loja de discos. No apartamento, havia um sofá-cama com a paina aparecendo por um buraco da mola, entre manchas indistintas – marcas de amor ou de revolução? Na parede, um cartaz dos girassóis de Van Gogh e, numa tábua sobre tijolos, livros da Academia de Ciências da URSS. Um companheiro me emprestara a chave com olhar preocupado, sabendo que era para o amor e não para a política. “Cuidado, hein, se o dirigente da “base” souber…” – disse-me, vendo a gratidão em meus olhos.

Eu era virgem de sexo com namoradas, pois pouquíssimas moças “davam”, nessa época anterior à pílula; transar para elas era ainda um ato de coragem política. As moças iam para a cama pálidas de medo, para romper com a “vida burguesa”, correndo o risco da gravidez – supremo pavor. Famintos de amor, usávamos até Marx para convencer as meninas.”Não. Aí eu não entro!”, gemiam, empacadas na porta do apartamento. Nós usávamos argumentos que iam de Sartre e Simone até a revolução: “Mas, meu bem… deixa de ser “alienada”… A sexualidade é um ato de liberdade contra a direita…” Tudo era ideológico em Ipanema – até a praia tinha um gosto de transgressão política. Éramos assim nos anos 60.

A guerra fria, Cuba, China, tudo dava a sensação de que a “revolução” estava próxima. “Revolução” era uma varinha de condão, uma mudança radical em tudo, desde nossos “pintinhos” até a reorganização das relações de produção. Não fazíamos diferença entre desejo e possibilidade. Eu era do “Grupo Vertigem”, como colegas radicais nos apelidaram. Nossa revolução era poética, Rimbaud com Guevara; era uma esperança de um tempo futuro em que a feia confusão da vida se harmonizaria numa perfeição política e estética. Para os mais obsessivos, era uma tarefa a cumprir, uma disciplina infernal, um calvário de sacrifícios para atingir não sabíamos bem o quê. Tínhamos os fins, mas não tínhamos os meios.

E, como todos, tínhamos horror ao demônio do capital e da administração da realidade para a luta (coisa chata, sem utopia…) Por isso, a incompetência era arrepiante. Ninguém sabia administrar nada, mas essa mediocridade era compensada por bandeiras e frases bombásticas sobre justiça social, etc… Nunca vi gente tão incompetente quanto a velha esquerda que agora quer voltar ao poder como em 63, de novo com a ajuda de um presidente. Assim como foi com Jango, agora precisam do Lula. São as mesmas besteiras de pessoas que ainda pensam como nos anos 60 e, pior, anos 40.

“Revolução” era uma mão na roda para justificar sua ignorância, pois essa ala da esquerda burra (a inteligente cresceu e mudou…) não precisava estudar nada profundamente, por serem “a favor” do bem e da justiça – a “boa consciência”, último refúgio dos boçais. Era generosidade e era egoísmo. A desgraça dos pobres nos doía como um problema existencial nosso, embora a miséria fosse deles. Em nossa “fome” pela justiça, nem pensávamos nas dificuldades de qualquer revolução, as tais “condições objetivas”; não sabíamos nada, mas o desejo bastava. Como hoje, os idiotas continuam com as mesmas palavras, se bem que aprenderam a roubar e mentir como “burgueses”. A democracia lhes repugnava, com suas fragilidades, sua lentidão. Era difícil fazer uma revolução? Deixávamos esses “detalhes mixurucas” para os militantes tarefeiros, que considerávamos inferiores, “peões” de Lenin ou (mais absurdo ainda) delegávamos o dever da revolução ao presidente da República, na melhor tradição de dependência ao Estado, como hoje. Deu nos 20 anos de bode preto da ditadura.

Por que escrevo essas coisas antigas, estimado leitor? Porque muita gente que está aí, gritando slogans, não quer entender que a via mais revolucionária para o Brasil de hoje é justamente o que chamávamos de “democracia burguesa”, com boquinha de nojo. Muita gente sem idade e sem memória não sabe que o caminho para o crescimento e justiça social é o progressivo aperfeiçoamento da democracia, minando aos poucos, com reformas, a tradição escrota de oligarquias patrimonialistas. Escrevo isso porque acho que a luta de hoje é entre a verdadeira esquerda que amadureceu e uma esquerda que quer continuar a bobagem, não por romantismo, mas porque o Lula abre-lhes as portas para a lucrativa pelegagem. Vejo, assustado, que querem substituir o patrimonialismo “burguês” pelo sindicalista, claro que numa aliança de metas e métodos com o que há de pior na política deste país. Vão partir para um controle soviético e gramsciano vulgar do Estado para ter salvo-condutos para suas roubalheiras num país sem oposição, entregue a inimigos da liberdade de opinião.

Escrevo isso enojado pela mentira vencendo com 80% de Ibope, apagando como da história brasileira o melhor governo que já tivemos de 94 a 2002, com o Plano Real, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, com a telefonia moderna de hoje, com o Proer que limpou os bancos e impediu a crise nos atingir, com privatizações essenciais que mentem ao povo que “venderam nossos bens…”, com a diminuição da pobreza em 35% e que abriu caminho para o progresso econômico de hoje que foi apropriado na “mão grande” por Lula e seus bolchevistas. Ladroeira pura, que o povo, anestesiado pelo Bolsa-Família e pelas rebolations do Lula na TV, não entende. Também estou enojado com os vergonhosos tucanos apanhando na cara por oito anos sem reagir. O governo Lula roubou FHC e o mais sério período do País e seus amigos nunca o defenderam nem reagiram. São pássaros ridículos em extinção.

Tenho orgulho de que, há 40 anos, no apartamento conjugado do Partidão com minha namorada, eu gostava mais dos girassóis de Van Gogh do que dos livros de Plekhanov. Por isso, para levar meu primeiro amor ao apartamento, usei uma cantada de esquerda: “Nosso amor também é uma forma de luta contra o imperialismo norte-americano.” E ela foi.

(Arnaldo Jabor - Fonte: O Estado de São Paulo)

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