sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Baitas Machos

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Andei lendo, outro dia, as memórias de um ex-guerrilheiro gaúcho, um desses meninos revoltados, oriundos geralmente de família burguesa, que são capazes de levantar-se em arma contra o Estado enquanto não recebem poder e regalias. Hoje, confortavelmente sentado nas poltronas do poder, o guerrilheiro de pijamas evoca com saudosismo seu passado stalinista, tentando pintar como heroísmo o que não passou de atroz estupidez. Mas isto é o de menos, afinal está virando moda e modas não me interessam.

O homem transitou pela Argentina, Chile, Argélia e acabou em Paris, sonho de todo revolucionário, afinal Paris foi a cidade que abrigou o maior contingente de exilados latino-americanos, que as esquerdas podem se enganar quanto aos rumos da História, mas na hora do bem-bom ninguém tem dúvidas, antes a burguesa Lutécia do que o desconforto das heróicas Havana ou Moscou. Mas isto tampouco importa. Impressionou-me no livro, não seu caráter de diário de viagem, com fotos idiotas de alguém que julga estar vivendo um momento histórico por onde quer que passe, vício ancestral de todo comunossauro, que ao substituir Deus pela História esqueceu que se o finado Adonai era absoluto, a História é muito relativa.

Impressionou-me, isto sim, um pequeno episódio ocorrido em Valparaíso. O bravo guerrilheiro, tendo deixado sua amada no Sul, repousa na cama de uma chilena. Quando sua Dulcinéia, no melhor estilo das fotonovelas cristãs, vai encontrá-lo em Santiago, o corajoso revolucionário abandona, sem sequer despedir-se, a moça que o acolheu em seus dias de exílio.

Baita macho! O homem enfrentou polícia, exércitos, ditaduras e, na hora de ser honesto com uma parceira, enfiou o rabo entre as pernas e fugiu qual cachorro magro. Conquistar o mundo — ou uma sinecura, para revolucionários gordos e mais modestos — parece ser empreendimento mais fácil do que olhar nos olhos da pessoa que dia abraçamos e que nos fez felizes. Falando assim no plural, confesso estar falando à toa, afinal jamais participei de tais covardias. Mas já encontrei não poucos valentes capazes de tomar de assalto um ninho de metralhadoras sem ter, no entanto, a coragem de confessar à própria companheira onde e com quem passaram a noite.

Em meus dias de universitário, desde minhas primeiras incursões ao território do outro sexo, sempre fui partidário de uma glasnost afetiva e sexual. Estudante de Filosofia e Direito e leitor ávido de Platão, Nietzsche, Dostoievski e Pessoa, entre outros, monogamia sempre me soou como solene balela dos papistas. Homem que conhece uma só mulher, a meu ver não conhecia nenhuma, pois não tinha elementos de comparação. O mesmo sempre afirmei sobre a mulher que conhece um único homem e jamais exigi fidelidade de companheira alguma. As amigas daqueles dias, hoje todas bem casadas (afinal, não casaram com este que vos escreve) certamente guardarão uma grata lembrança de um dia ter encontrado alguém que jamais mentiu nem precisou buscar bares discretos para encontrá-las. Sou fiel, isto sim, a bares. Para não traí-los, sempre marquei encontros com elas nos mesmos bares e mesas. Desde que me entendi por gente, passei a ter uma visão atéia do mundo e não tinha razão alguma para submeter-me aos grilhões de Roma.

Admirávamos, nos anos 60, a relação aberta existente entre Sartre e Simone de Beauvoir, cada um vivendo sua vida e elaborando sua obra sem interferir na vida do outro. Admirávamos é modo de dizer, o verbo talvez ficasse melhor no singular.

Pois se era lindo Sartre e Simone terem respectivamente seus amantes lá em Paris, em Porto Alegre o papo era outro. Uma troca de esperma sempre rejuvenesce uma mulher, dizia Henry Miller. Em Paris, é claro. Mal uma esposa ou namorada sedenta de outras emoções aventava tal hipótese, os machões gaúchos, por mais lidos e liberais que fossem, se arrancavam os cabelos: “Estás louca! Como levar este tipo de vida nesta sociedade mesquinha? Fosse em Paris, tudo bem”.

Como nem um nem outro iam a Paris — e se lá estivessem, continuariam vivendo a mesma miséria sexual — o macho continuava a exercer sua tirania. Mas dos anos 60 para cá, as mulheres entraram de rijo no mercado de trabalho. E quem é dona de seu sustento é dona de seu corpo. A mulher deu um passo à frente e o homem não conseguiu acompanhá-la, daí a avalanche de separações de nossos dias. Mas falava de Simone.

Apesar de admirá-la, a mulher sempre foi uma pedrinha em meu sapato, pelo menos no curso de filosofia. O Segundo Sexo era um dos ensaios em moda, e mal eu propunha a uma colega uma relação erótica, meramente lúdica, lá vinha pedrada: “estás achando que eu sou mulher-objeto?”. Este maldito conceito, elaborado às margens do Sena, roubou-me centenas, talvez milhares de horas de folgança. Eu queria apenas dar e receber prazer, pois esta história de amor e sexo é coisa de católico e católico eu não era e muito menos a Simone. O remédio era buscar prazer em outras áreas, junto às enfermeiras, bancárias, balconistas e profissionais da noite, moças que jamais haviam lido Simone e se entregavam a seus instintos sem o freio mental das universitárias que liam Simone.

Em Paris, a Gallimard acaba de lançar Lettres à Sartre, epistolografia póstuma desta senhora que de tantos prazeres me privou em meus dias de aprendiz de filósofo. Numa espécie de voyeurisme literário, la Beauvoir relata a seu companheiro suas lides de leito com homens e mulheres. Junto com esta obra, foi lançado seu diário, Journal de Guerre, septembre 1939 — janvier 1941. E não é que em plena guerra Simone fazia com as moças o mesmo que eu queria fazer com elas em tempos de paz? Só que elas não deixavam, pois haviam lido Simone. Destaco uma pérola, datada de um :

— Já são 6h10min — diz Simone — e eu acho que ela calcula o tempo que restará para os abraços, isto me irrita, eu lhe propus uma hora a mais para escutar música e ela resmunga. Sei que sou injusta, ela me vê tão pouco, ela não pode suportar estar encerrada comigo em um quarto sem estar em meus braços… Enfim, eu a pego em meus braços e em cinco minutos estamos na cama. Abraçadas. Mal acabamos, ela se agita e soluça: “Foi um fracasso, não há nada a fazer”, etc., e logo ela se desmancha com minhas carícias. Acendemos a luz, nos vestimos e como ela quer ainda me pegar, tenho um movimento de humor que lhe traz lágrimas aos olhos, do qual me desculpo banalmente.

Pois confesso jamais ter sido assim indelicado com uma mulher, e muito menos tão indiscreto. A líder e teórica das feministas foi tão linguaruda, mesmo em vida, que fez um Mauriac escrever a propósito de um de seus romances: On sait déjà tout sur le vagin de cette dame! O mesmo não escreveria, por exemplo, Drummond de Andrade, para quem “as coisas de cama são segredo de quem ama”.

Ou nem tanto. Pois o poeta que cantou Stalingrado ao mesmo tempo que trabalhava para o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), durante a ditadura de Getúlio Vargas. Foi postumamente flagrado em sua mineirice. Uma exposição de fotografias no Rio de Janeiro, que comemora o sexagésimo aniversário da publicação do primeiro livro do poeta, nos revela seu caso secreto, uma moça com quem conviveu durante 36 anos. Apesar de ter o dobro da idade de sua musa, Drummond ainda se dava ao luxo de alimentar este sentimento inerente aos inseguros e pobres de espírito, o ciúme.

A vida dúbia e hipócrita vivida pelo poeta que acenava para as esquerdas e comia milho na mão de Getúlio Vargas quase o privou deste afago fundamental, apertar a mão de quem amamos quando estamos de partida. Enquanto Drummond morria no hospital, sua companheira não podia vê-lo, dada a presença da esposa do poeta no quarto. Finalmente, com a intervenção de um neto, Dolores saiu e Lygia pode apertar-lhe a mão até o último suspiro.

E assim são os heróis desde século, em prosa e verso cantados, mitificados em vida e reduzidos a farelo mal descem à tumba.


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