sábado, 26 de novembro de 2011

O mundo restaurado - Luis Fernando Veríssimo

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O pai ganha os presentes que um pai costuma ganhar. Camisas, lenços, uma gravata muito parecida com a que deu para alguém no ano passado, meias. Alguns livros, alguns vinhos. Mas fica de olho nos presentes das crianças. Com o ar condescendente de quem tem um saudável interesse nas atividades dos filhos. Mas louco de inveja.

― Meu filho. Um Autorama!


― É, pai.


― Vamos armar agora mesmo!


― Agora não, pai. Amanhã, a gente arma.

― Amanhã, nada. Agora! Arreda essa papelada pra lá. Aqui na sala mesmo tem lugar. 



A mãe intervém.

― Você está louco? Armar esse negócio no meio da sala, no meio da festa?! E as crianças precisam ir dormir. Foi excitação demais para um dia só.


O pai fica olhando com ressentimento o Autorama que desaparece da sala embaixo do braço do guri. Pensa, vagamente, em seguir o filho e propor uma barganha. Escuta, a mãe não está nos ouvindo. Eu te dou todos os meus lenços e tu deixa eu armar o Autorama aqui no teu quarto, com a porta fechada. Mas não. Os convidados, o que pensariam dele? Na certa que estaria bêbado, como no ano passado.

Ele examina o livro que ganhou do cunhado. O Mundo Restaurado, de Henry Kissinger. O cunhado, inexplicavelmente, lhe atribui um grave interesse nos problemas contemporâneos. Vive lhe mandando recortes de jornal com trechos sublinhados e pontos de exclamação na margem. Às vezes, telefona, com recados cifrados.


― Lembra aquela nossa conversa?


― Qual?


― Veja na terceira página do Correio de hoje. Um pequeno tópico no canto inferior direito. É a prova de tudo aquilo que nós discutíamos no outro dia, lembra?


― Não.


― A crise é irreversível, meu filho. Um abração.

Ele só ganha presente de homem sério. De homem preocupado com os problemas contemporâneos. Lenços brancos, camisas sóbrias, meias pretas e marrons. No ano passado, deu para um primo taciturno uma gravata cinza-escura com manchas pretas e estrias roxas, como hematomas. Com um cartão gozando a seriedade do primo. Este ano recebeu de volta a mesma gravata. Sem cartão. As pessoas, pensa, me confundem com um adulto. Vê a filha mais velha que passa equilibrando várias caixas de presentes.


― Te desafio para uma partida de damas.

Não é uma proposta carinhosa. É um desafio mesmo. Posso derrotar qualquer criança nesta sala! Dama, moinho, bola de gude, palavra-cruzada... A filha o ignora e também vai para o quarto.

Decidiram, ele e a mulher, não dar nenhuma arma de brinquedo no Natal. Nem arco e flecha. Os psicólogos não aconselham. Mas ele agora tem uma lembrança que lhe sobe até a garganta e fica atravessada: aos doze anos ganhou uma metralhadora de latão que cuspia fogo. Tinha uma manivela do lado que a gente girava e a metralhadora cuspia fogo! O cunhado senta ao seu lado, com um copo de uísque na mão. Aponta para o livro.


― Isso aí explica muita coisa. Lembras daquela minha tese?...

Mas ele não ouve mais nada. Ergue o Henry Kissinger até os olhos, como se mirasse uma metralhadora, e começa a girar uma manivela invisível do lado do livro. Ao mesmo tempo, com a boca imita o ruído de tiros, e descobre entusiasmado que ainda não perdeu o jeito. O cunhado fica olhando, entre surpreso e divertido, enquanto ele varre a sala com rajadas imaginárias.




(Luis Fernando Veríssimo - Fonte: http://pt.scribd.com/doc/3070403/Verissimo-Luis-Fernando-Ed-Mort-e-Outras-histrias)
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