sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Bode expiatório - Carlos Heitor Cony

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A crônica é antiga e serve de advertência e castigo. Nunca se deve dizer: "  Desta água não beberei" 
 

Não sou muito de ouvir rádio. Eventualmente curto um clássico em FM, mas prefiro meus CDs de sempre. No varejo, o rádio é apenas um eletrodoméstico como a geladeira e o liquidificador. Uso deles quando preciso -e pronto.

Outro dia, porém, o som do carro pifou, o CD não funcionava e o rádio ficou imóvel, ligado compulsoriamente a uma estação que transmitia um debate, justo na hora em que me deslocava para o trabalho.


São dois jornalistas que entrevistam personalidades sobre diversos assuntos: falta de urbanização nas favelas, diálogo Sul e Norte, poluição dos rios, extinção de espécies animais no polo, democratização do ensino, índice de cálcio no leite, pletora nos serviços postais por ocasião do Natal, programa nuclear, futura transposição do São Francisco, pedágio nas estradas federais, a cárie no povo brasileiro, atendimento hospitalar, democratização dos cemitérios, violência nas grandes cidades, miséria nas pequenas cidades, reestruturação da carreira das bibliotecárias, os novos regulamentos da Fifa, política de habitação, invasão de favelados, rumos do cinema nacional, demarcação de terras indígenas, ética na publicidade, a pirataria no mercado fonográfico, racionalização da alimentação para o brasileiro, a influência das Comunidades Eclesiais de Base, lições da última Copa do Mundo, a mortandade de peixes na lagoa Rodrigo de Freitas, a estética de Ipanema, a crise no mercado de trabalho, a necessidade de um novo acordo ortográfico da língua portuguesa -enfim, a pauta é variada e fornida de palpitantes temas.


Como o programa dura mais do que a minha viagem até o trabalho, fico apenas informado de angustiantes problemas nacionais e internacionais, mas nunca ouço as soluções nem tomo conhecimento das conclusões.


A princípio, a pauta que enunciei, linhas atrás, poderia dar a impressão de ser um programa eclético. Engano letal: é monótono porque os jornalistas que fazem a mediação, ou seja, que conduzem os assuntos e os entrevistados de diversas áreas, já superaram a fase das vãs inquietações de qualquer mortal.


Já detectaram o bode expiatório, a besta negra do nosso tempo e de nossos problemas: é o sistema. Note-se: não é o governo, pois muitas vezes o entrevistado é ministro ou funcionário graúdo do governo, são feitos rapapés às autoridades. Mas o sistema termina sempre como réu.


Os carteiros são obrigados a distribuir 10 mil cartas por dia em 500 logradouros públicos. Ganham pouco, não têm mordomias nem taxa de insalubridade. O culpado é o sistema burguês que tumultua a vida desses funcionários, sobretudo por ocasião do Natal, inflacionando as caixas postais com mensagens natalinas.


Há evasão de renda nos postos que cobram pedágios nas estradas. A culpa é do sistema, porque o funcionário precisa do dinheiro para comprar o leite das crianças. O Brasil votou a favor de um programa que vai salvar os pinguins do polo Sul da progressiva extinção, a culpa é do sistema porque esse dinheiro a ser empregado poderia ser economizado se houvesse uma mentalidade (do sistema) que impedisse, desde a era glacial, que os pinguins entrassem em extinção. Finalmente, ninguém precisa se inquietar com o preço dos livros escolares: a culpa é do sistema que encarece o produto a fim de manter o povo na ignorância.


Como se vê, o sistema é culpado de tudo, inclusive desta crônica sem inspiração e deste desabafo sem razão. Pensando bem, eu que sempre me considerei culpado de alguma coisa, descubro, maravilhado, que afinal sou integralmente inocente.


 


A crônica acima é antiga, aí pelos anos 80, e para mim serve de advertência e castigo. Nunca se deve dizer: "Desta água não beberei". O tempo passou e, de dez anos para cá, mantenho com o Artur Xexéo um programa diário na CBN, onde faço ou pretendo fazer a mesma coisa que critiquei nos outros. Tenho péssima dicção e nem sempre domino o tema em debate. Do terremoto no Haiti aos mineiros no Chile, sei pouquíssima coisa. Entro então com o chamado "senso comum", repetindo os que me antecederam e aqueles que certamente me sucederão. Culpando o sistema, qualquer sistema, terei sempre razão. 


(Carlos Heitor Cony - Folha: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1510201028.htm)

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